Sem pena de ter: Tere Tavares

‘Invenção 2025’, Tere Tavares


A Igreja tinha um cheiro de antiguidades. Um balcão repleto de livros cobertos de pó obstruía o corredor. Algumas abelhas se distraiam pousando em velhas imagens que rodeavam as paredes. O rapaz passou as mãos de leve nos pés quebrados de um Santo Antônio. Uma lástima deparar-se com tudo naquele estado. Ele também tocou os bancos de jacarandá. Sentou-se.

Tanta atenção lhe despertava o lugar que quase esquecia o que o levara até ali.

A moça da rua de ontem. Como não atender-lhe as dúvidas, esquecer-lhe o tom suplicante?

Daria cabo do seu egoísmo cumprindo a promessa. Antes rezaria pelos mortos com a mesma devoção que o faria para os vivos. Pediria pelo fim da angústia dita esperar, da enfermidade nominada crer, e tudo o mais que lembrasse as tristes ilusões do mundo. Pediria perdão pelo que pedisse e pelo que pensasse.

Naquela manhã de Maio morrera a morte do seu olhar na moça da rua de ontem. O assíduo assédio daquela alma se estendia sobre o silêncio daquele cenário gasto. A manhã de Maio era ali, com ele, ajoelhado, mentindo qualquer escrúpulo, revelando ocos de fora e de dentro. O resto era medo que o deixava na margem lúcida de próximas águas. O repasto, a moça da rua de ontem.

Vestia a viva ânsia de sair o mais depressa dali e levar-lhe o que a cobriria como a uma rainha. A sua. A imagem de ouro de Santa Rita. Um pé na escadaria e outro na rua. Voltou. Queria também os livros para salvar o amor no amanhecer e no poente.
 
Nota: texto premiado no banco de talentos Febraban de 2007, por unanimidade, dos jurados da UBE – União Brasileira de Escritores. Conto publicado na antologia Febraban, 2007, no livro “Meus outros, 2007 e no livro “Luz”, 2024.


Tere Tavares nasceu em São Valentim/RS, é poeta, contista, ensaísta e artista visual. Reside no Paraná desde 1996 em Cascavel, PR, Brasil. É autora de doze livros publicados, dentre eles, Flor essência, Meus Outros, Entre as águas, A linguagem dos pássaros, Vozes & Recortes, A licitude dos olhos, Na ternura das horas, Campos errantes, Folhas dos dias, Destinos desdobrados, Diário dos inícios e Luz. A autora participa de diversas coletâneas e antologias pelo país e exterior, algumas resultados de concursos literários. Os livros Campos errantes e Folhas dos dias foram contemplados pela lei Aldir Blanc, Edital Arte em toda Parte, 2020.  Integra a Academia Cascavelense de Letras, ocupando a cadeira de número 26, patrono Tulio Vargas.

Blog pessoal: http://m-eusoutros.blogspot.com/
Facebook: https://www.facebook.com/tere.tavares.1/
 
 
 
 
 
 
 
 

Uma resposta

  1. Destaco em especial neste conto a força do investigativo vindo dos longos poemas que são os próprios contos de Tere Tavares. Há a inscrição do rigor poético, mas com a mesma feliz criação, o caminho novo fica mais alargado com a trama e seus roteiros de ações. O que os livros empoeirados arrancariam de fato da personagem com os olhos esquecidos na igreja? As mãos nos pés arrancados de Santo Antônio teriam que encontro naquele ambiente vivificado por seu abandono? Desconfianças são motivadas pela narrativa sólida em dualidades, em contrastes insólitos supervalorizando a ambientação possível nas descobertas de silêncios nos gestos. Caminhemos por entre os tantos sacerdócios da boa literatura que o roteiro é longo, incerto, cheio de miragens, de bons e operatórios enganos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *