I – folheio teus cabelos nesta manha de
segunda-feira
segunda-feira
folheio teus cabelos pela manhã
e um sonho colado à corda de sete linhas mais
uma orelha
pendurada na língua a palavra
estremeço
meus olhos abertos no escuro
todas as páginas escritas começam a queimar
pelas beiradas
depois o centro
estremece
a cidade e seus chakras encobertos pela luz
um poema escapa
dos teus pelos
e eu não posso perdê-lo
fodam-se os livros
fodam-se os livros
e todas bibliotecas itinerantes
teu nome é incêndio
e morde
II – folheio teus cabelos nesta manha de
terça-feira
terça-feira
desse incêndio só me restaram
os dentes
empenhados no sorriso sonso
de cinzas
eu quero é crescer livro brotar
nuns verdes longos
sumorosos de cama-de-açúcar
meu de engenho
e mais outra vez
fogo
labaredas lambendo o costado
do asfalto
e os meus olhos muito secos
descobrindo
assimetrias
um eito é muito chão pr’essa
queimada
e é o inverno ainda sugando
a gravidade
dos mamilos
os livros sobem perniciosos
pelas estantes
e minhas pernas fortes sobem mais ainda
teu céu, meu limite infinito
minhas cinzas todas penhoradas
no esfregaço de dentes lascados
uma caverna é o tamanho exato
pra essa floresta
sem pressa
sempr’essa
então a gente se arrisca no risco
de um riscado: papel pautado
brasa incandescente rubor vivo
depois ai
III – folheio teus cabelos nesta manha de
quarta-feira
quarta-feira
um sol:
teu sexo na minha boca
aquecendo palavras mergulhadas num gole
de silêncio
a luz penetra com força o vão entre as duas
bandas da cortina
tua bunda sempre
linda
sobre a minha
linda também
então trago tua fumaça pra minha
e sopro sobre teus cabelos
fio de nylon resistente à pescaria
três gotas de cera quente sobre as costas
é pharmakon suficiente
para um gozo vermelho
e in-can-descente
o segundo sol pulsando
na palma da minha mão
teu nome
escrito com gilete sobre os trilhos da vida
é bom que chova um pouco à tardinha
porque labaredas consomem o agreste
dos lençóis
dois sóis
na órbita da boca
fecho os olhos: não importa
ouço o trem
só em você eu ardo
IV – folheio teus cabelos nesta manha de
quinta-feira
quinta-feira
a semana já quase acabou e
continuo lendo teu corpo de cabeceira
não há pontos finais, apenas
os vazios de páginas brancas
e por escrever
mesmo assim li teu rodapé
de joelhos
enquanto teus dedos folheavam os meus
cabelos
restos de resistência
apodrecendo entre os dentes
uma chama enterrada na vela
me vela ou chama
depois desaparece
com o gosto da tua língua es-
correndo na minha
rumo ao breu desses nós
mesmos
meu nome é agora ainda antes das 6
(e temos tempo)
a senha é um acento lituano no u
depois passa saliva
na ponta dos dedos
e vira as páginas da minha história
sem se preocupar com o conteúdo
só a forma
faz
literatura
é sempre no depois que se demora
o agora
um beija-flor sugando sementes
de marijuana
e petúnias espetadas nos ombros
camuflam o rugir do despertador
mas despertam
tudo que é carvão esquecido na extremidade da cama
aí você me
inflama e outra vez
inflama e outra vez
eu ardo
V – folheio teus cabelos nesta manha de sexta-feira
se não houvesse leis
nosso seria o tempo da poesia
então declamaríamos a ordem
dos homens vestidos de saias
mas tudo isso eu li no final
da página 35, um parágrafo longo que termina na 36
esquina dos meus joelhos
esfolados, com a dos teus calcanhares de pisar
preciso
preciso
dessa marca de dedos ainda
colados na palidez da página
e nem por isso deixei de ser feminista: a dor é uma
escolha também
então colho algumas aliterações, subindo e descendo
nos hipérbatos necessários
olhando de longe teu corpo
nem parecia tão complexo
mas são tantas as articulações, as camadas
finíssimas
finíssimas
que se escondem sob os fios finos e entrelaçados
do papiro e das papilas gustativas que me gusta
mucho
mucho
estar em você
abrigada
dessas chuvas
obrigada
à tua palavra
o viver absoluto de um livro aberto ao meio:
geruza agora ama, livre
o livro se escreve sobre mim
com letras gaguejadas
na minha pele tremida
eu digo não, mas já é sim
VI – folheio teus cabelos nesta manha de sábado
todo livro é um quarto
por isso a intimidade do um
convite
dois é um
na matemática aproximada
da poesia
então m’ajeito com o livro
pousado no colo
esse jeito teu de se abrir
impudicamente pra mim
sonolentos são os pássaros
que não cantam à janela
quando teu sol desarma
a noite
tuas palavras me invadem
pelo ouvido
eu as aspiro
tua voz na minha língua é ainda tua ou minha
essa voz na tua língua?
me lambe a dobra sugando dela o excesso
de brancos
e rasga todas as páginas em que não se lê
‘me fode’
folha por folha: uma a uma desde a raiz
dos teus cabelos
ilegíveis
cuidado: todo livro guarda um abismo numa das
páginas
páginas
convém não demorar muito neste buraco porque há
sítios
sítios
ainda não percorridos: à página 99 sou menino e
atendo
atendo
pelo nome de
puta
e três traços fundos te cortam a testa: isso não
vai acabar
vai acabar
nunca
meu nome é ainda antes das 6 e as fodas de sábado
se esticam muito muito longamente
se esticam muito muito longamente
até o anoitecer
eu ardo
eu ardo
eu ardo
Ilustrações: Rita Lino
Geruza Zelnys é escafandrista com doutorado em literatura líquida. Doutora em Teoria Literária (USP), com pós-doutorado em processos criativos e terapêuticos (UNIFESP). Trabalha comoprofessora universitária no Instituto Vera Cruz e ministra oficinas de escrita criativa. Em 2014, criou o curso de Escrita Curativa. Publicou vários livros,
entre eles, folheio teus cabelos no contratempo do vento (Ed. Urutau, 2017). Nele o semanário arde até domingo. É geminiana com ascendência hilstiana em girassóis. Mora em São Paulo, mas vive no interior.
entre eles, folheio teus cabelos no contratempo do vento (Ed. Urutau, 2017). Nele o semanário arde até domingo. É geminiana com ascendência hilstiana em girassóis. Mora em São Paulo, mas vive no interior.