
Eu nunca tinha sido hilariante. Não — sempre fora, mas nunca tivera o meu talento reconhecido. A atenção dele era uma lanterna que, ao poisar sobre mim, me descobrira. Inteligência. Sentido de humor. Perspicácia. Tudo o que eu dizia era condecorado com corações — virtuais — e gargalhadas — orgânicas. Quando ele me encontrou, eu comecei.
Dois meses passados, quase que moro no seu apartamento. As cortinas finas ardem um sol entardecente. Ganhei sensibilidade às disposições dele. Acorda diferente todos os dias. Já vou sabendo. Hoje, está desprendido, mas não diz que precisa de espaço. Diz que me fará bem sair um pouco. Que vá fazer umas compras. Ele tem de trabalhar.
Resgatá-lo do curto desconforto agrada-me. Desconfortar-me para o confortar conforta-me. Ponho os sapatos e saio.
No exterior, o sol parece mais frio. Ela espera que eu chegue à esquina para me abordar.
É bonita, tenho de admitir — mais do que eu. Primeiro, acho que vai perguntar por direcções, mas logo me desembacio da suposição.
— És a nova namorada do…, não és?
Assinto com hesitação. Sou-lhe alguma coisa, sem nome de tão forte. Interessa-me mais saber o que ela lhe é.
— Tem cuidado. Ele mente.
— Desculpa, e tu és quem?
— Sou a Joana.
Também me chamo Joana.
— Não sei quem tu és…
— Já agora, diz-lhe que pare de mandar mensagens. Vão parar ao spam. Está bloqueado.
— Desculpa, mas tenho pressa.
— Ouve-me, tem cuidado. Ele é um buraco negro. Vai usar-te até seres uma sombra. Depois, vai descartar-te. Vai dizer-te que te mates. Faz isso com todas.
Deixo-a a discutir com as minhas costas curvadas. Sinto algo quebradiço sob a camisola, como se trouxesse uma folha de Outono entre os pulmões.
Quem mentiu fui eu: sei quem ela é.
Ele é extraordinário, mas tem a fraqueza de se fazer magoar. O que ela não sabe, não tem como saber, é que a intimidade que o une a mim é limpa. Desde o primeiro momento, desabafou comigo acerca das mulheres que o assediam. Algo faz dele presa preferencial de gente que sofre de transtornos. Aquela é só um dos muitos cavalos do carrossel.
Aos poucos, o peito recupera o novelo de brasa. Aquela Joana é mais bonita, mas não hilariante.
Retorno ao apartamento com os sacos das compras reboludos. Ele está no duche.
Sem a presença dele, a casa parece desmobilada. Um incómodo dobra-se. Faz volume. Eu confio nele. Não confio nela. Podia, talvez, sentar-me à secretária, mexer o cursor, abrir a caixa de mensagens enviadas…
Tento resistir, mas o incómodo engrossa. Aperta onde mais importa e só me quero salvar, recuperar o sol a arder nas cortinas, no sofá, tecidos moles… Saio da cozinha em direcção à sala, onde o computador dele espera em silêncio.
O computador de Schrödinger.
O vapor entorna-se pela casa. A porta da casa de banho está aberta e ele sai enrolado na toalha a passo ligeiro.
Vejo o riso materializar-se na cara vazia.
Eu volto a ser hilariante.
Carolina Fidalgo (Coimbra, 1992) vive atualmente entre Portugal e a Suécia. É licenciada em Línguas Modernas pela Universidade de Coimbra e mestre em Literatura Modernista e Pós-Modernista pela Universidade de Glasgow. Trabalhou como leitora de língua portuguesa na Universidade Normal de Harbin e na Universidade de Desporto de Pequim, na China. Atualmente, dedica-se ao ensino de Português Língua Estrangeira e à revisão literária. Tem colaborado com diversas revistas e antologias portuguesas, nomeadamente a Fábrica de Terror, a Palavrar e a Pacto.
