Sonho de liberdade em “A janela dos ventos”, de Jandira Zanchi: Solange Firmino


Há alguns anos eu escrevi um texto sobre o livro Luas de Maçã, de Jandira Zanchi, o qual dei o título de “O Simbolismo em Luas de Maçã“. Naquele texto eu falei que a poeta utilizava principalmente imagens sensoriais para criar uma atmosfera carregada de “simbolismo” na comunicação e expressão artística. Ela não perdeu essa característica, mas aqui não falarei somente desse tema.

Podemos ver no poema abaixo que a escolha das palavras evoca sensações espirituais. As imagens das “flores magras e vermelhas/atônitas da relva” e da “lua arqueada de espanto“; além de outras ideias como vento, almíscar, arcanjos e artefatos, contribuem para a construção de uma atmosfera misteriosa.

 

ARTEFATOS

 

participo do grande vento das noites frescas de almíscar

e agonia e alegria e magia – o desejo levitado por

arcanjos ou asnos ou arcanos ou artefatos – seduzindo

milagres e ventarolas e flores magras e vermelhas

atônitas da relva e da noite ardida

de uma meia lua de acetona das madonas decaídas

em coro vazio, mas livre na ascensão, enquanto

se move o mundo na nau fragata das arquidioceses

 

suspensa dos suspensórios sagrados

lua arqueada de espanto

no aéreo vapor das águas.

 

O uso das “3 notas” como um elemento simbólico é diferente. Aqui, temos um poema mais direto em termos de linguagem, mas ainda mantendo um toque místico: perfume, sonho, noite, cordas, acordes – para falar sobre sonhos, crescimento e movimento. O substantivo “crisálida” indica solidão, pois é a fase em que a borboleta fica no casulo.

 

3 NOTAS

 

alcanço o canto da estrela prima

solo de cordas e acordes

perfume – encanto – da noite vacilante

ante o astro que em suas 3 notas sibila

o sonho aspirado de alguma madrugada vadia

 

enquanto tua alma crescendo em

                                     crescente crisálida

é o movimento – aleatório – do vento.

 

O poema abaixo usa a imagem das “águas mornas” para falar sobre a transitoriedade da vida. Exatamente como uma metáfora para os momentos finais: “até o outro lado da tarde“. A escolha das palavras (não te salvam, que te espezinham, te afundam) ressalta o desapego e a aceitação diante do inevitável.

 

ÁGUAS MORNAS

 

a vida porfia-se de tão poucos acabamentos

restam-nos os dias de águas mornas

que te espezinham

pois não te salvam, já que, não sendo

– suficientemente – ásperos,

te afundam até o outro lado da tarde.

 

Abaixo, a imagem de “miro no sol/acerto na lua” e a referência às “anáguas/brancas de liberta/e libertina” sugerem uma exploração da busca da autenticidade, mesmo com desvios e erros ao longo do caminho.

 

LIBERTINA

 

miro no sol

acerto na lua

e nas anáguas

brancas de liberta

e libertina

enredo meus dias.

 

Aqui, o foco recai sobre o destino e a vida em fragmentos. As imagens de “recortes” e “cantos de pássaros azuis” retratam a riqueza da experiência humana. O poema explora a complexidade e a diversidade da vida; destacando diferentes momentos que as pessoas passam durante o dia, relacionando-os com a natureza: “risadas de fim de noite/entre estórias sem fim“.

 

RECORTES

 

O destino

– não se apressem –

é lento e costurado

de raízes e vento

 

amealhado de recortes

em vais vens

de rendas e sedas

 

cantos de pássaros azuis

e flores amanhecidas

 

gorjeios de crianças

e cismas de mocinhas

 

risadas de fim de noite

entre estórias sem fim

 

mãos santas de senhoras

refazendo o ponto do assado

 

o sonho, no esteio da tarde,

escorrendo seu mel.

 

A estrutura e o ritmo deste poema refletem o tema de movimento e busca de liberdade (Exemplo: assopro… o casulo – a pupa ainda não é borboleta, o casulo é uma prisão onde ela não pode se mexer). As “paralelas” simbolizam os diferentes caminhos na vida, enquanto o “deus” mencionado pode representar as forças que moldam o destino. A repetição do fonema “l” criou em mim a sensação de grades.

 

PARALELAS

 

assopro

o nada

a nave

o dia

o cálice

o casulo

 

percorro o

movimento

em fases

acordes e

fragmentos

 

lisa e ligeira

na minúscula

fresta aberta

do deus

 

liberdade entre paralelas.

 

O poema seguinte usa a linguagem visual e sensorial para evocar a ideia de água como uma força transformadora e misteriosa. O poema explora ainda o poder presente na espontaneidade (em suas veias crespas/de sonhos e liberdade) e no lado imprevisível da vida: “são insólitos os ritmos e as fases“.

 


ÁGUA 

 

na flauta chinesa o chamado do deserto 

faz correrem pingos de consciente 

inconsciência – vesga e sábia 

em seus domínios ondulantes 

alfarrábios de consistência 

 

aos teus pés a chama que inflama 

e aquieta na ondulante montanha  

por detrás dos azuis escombros 

 

entre os espaços da alma vergam 

os aparentes sinistros ditames 

da sina que ensina ou não 

pois são insólitos os ritmos e as fases 

e mestras as assinaturas da água 

 

água que no deserto percorre 

– inacabada – os veios 

em suas veias crespas 

           de sonhos e liberdade

 

“Bonança” retrata a madrugada como uma concubina da noite, personificando-a de maneira estimulante. O poema destaca ainda a relação entre os elementos naturais, como o ciclo entre madrugada e noite, sugerindo uma reflexão sobre o passar do tempo com as mudanças da vida: “conhece a morte dos homens“.

 

BONANÇA

 

a madrugada avança

seus passos descalços

 

concubina da noite

esquecida do dia

conhece a morte dos homens

e seus sonhos azuis de perseverança

 

bonança

quem sabe pássaros

bocejem em seus ninhos

claridades e bons dias.

 

Aqui, o “vento”, elemento principal do livro, é apresentado como um elemento poderoso. Sua linguagem descreve a dualidade e a complexidade dele quase como a alegoria de um deus, porém, mais abaixo, “os cacos à margem” fazem com que ele seja reduzido apenas a uma substância aérea.

 


VENTO


vento, vento, vento – auréolas de fatos 

e crimes arrastados indiscriminadamente 

em teu seio aéreo gaseificado, 

se te suponho córrego do divino, espio bem

essa tua olímpica indiferença

aos rios e cópias lacrimejadas, 

à nódulos bombardeados denaus invasoras 

em seu piratas e imagens – a ti o céu e  templo

benéfico amplo cartesiano 

– estiagem ou aldeia amarela

de frutos e bênçãos 

– se quisesse, ingrato vento, 

esculpiria em Apolo o arredondamento de 

frutos e palmas, o centro, o favor

 

mas me esgueiro por entre tuas margens 

colada nos   fractais espelhos e cacos 

à margem sopro as ventilações 

e os encantos da suavidade,

do esquecimento por tantos impérios 

e tempos em terras lisas e sem lembranças.

   

O poema abaixo fecha com uma contemplação sobre o outono, usando variadas imagens para capturar a sensação da estação, como: “é ainda o tempo das rosas” e “tempo do deleite/de virgens de mel“, que transmitem tanto a beleza efêmera da vida como a transformação constante.

 

OUTONO

 

é ainda o tempo das rosas

e dos lírios – é ainda

 

permanecem bentos

o rosário e o dia – ainda

lentos e apressados

desligam em suas alvoradas

as medidas circunferências

de arautos e agrimensores

vagos e volumosos

perfumes partículas de prata

 

é ainda o tempo do deleite

de virgens de mel

nos ritos e suas bênçãos

 

o retorno à casa e ao altar

sagrado e às ordens de sua inocência

 

Outono de flores e fascículos no ímpio cristal do ser. 


Ilustrações: Odilon Redon



Jandira Zanchi é poeta ficcionista e editora. Tem publicados seis livros de poesia e um de contos.  Participou de diversas antologias, entre elas 101 poetas paranaenses. Edita Amaité poesia & cia. 

 

Solange Firmino (1972) – Rio de Janeiro – Tem Licenciatura em Português e Literatura pela UERJ. Trabalhou com Jardim de Infância, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Sala de Leitura em Escolas Municipais e Estaduais do Rio de Janeiro. Venceu o Prêmio Literário da Fundação Cultural do Estado do Pará com um livro de haicais e o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná, na categoria Literatura Infantil. Possui 7 livros de poesia publicados.

 


 

 

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