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Ilustração: Daniel Wurtzel |
De madrugada, a rouquidão da ventania sobrepõe seus agudos. São as notas de um saxofone barítono, com o acompanhamento de um coral de trompetes. A voz invade o quarto bem tarde, quando o colchão, o travesseiro e as cobertas já lutaram para se livrar de mim e estou de pé. Nos últimos vinte e cinco anos, vivi pela noite, tocando sax em bares e festas. Dormir, só durante o dia. Agora estou preso em casa e meu relógio mental não se ajustou ao novo fuso horário. E a lufada lá fora assovia, me convidando para sair.
Primeiro, o vento agarra os galhos da árvore ao lado do meu prédio. É uma das maiores tipuanas do quarteirão e uma das únicas que ainda não tombaram sobre o asfalto. Talvez porque ela aceite com graça o convite para dançar. Já tentei acompanhar a coreografia da sua copa, que envolve os cabos dos postes de eletricidade, dedilha as grades da lateral de outro edifício e espirra sobre os carros que se atrevem a interromper um momento de tamanha intimidade. Fico de fora, assistindo aquele balé enquanto trago um cigarro na janela da sala.
Então, o zéfiro enxerga a luz da brasa e vem na minha direção. Escala as paredes, descascando as pastilhas aqui e ali. Seu chamado lembra um arco ao friccionar as cordas do contrabaixo, seguido por violinos. As cortinas dão o alerta e fecho a janela antes que minhas partituras se espalhem randômicas pelo apartamento ou mesmo que algumas me traiam e tentem fugir de mim pelo vão da porta. Os vidros tremem como os tambores do tímpano no toque das baquetas de madeira. Aguardo o grande estilhaçar dos pratos no final do verso e ele nunca chega.
Engasgo com a fumaça e deixo o cigarro queimando pela metade, em um copo usado de cinzeiro. Vou até a cozinha, acendo a boca do fogão e envolvo a chama do fósforo com a mão, já prevendo a bufada travessa de alguma fresta. Escolho um pacotinho de chá, ainda que tomá-lo nunca tenha me ajudado a pregar os olhos. A ação de prepará-lo, porém, entrou para a lista de rotinas que, nesse ritual insone e asmático, deve ser seguida à risca. A apneia é o despertador. Fico na vertical, abandono a cama, esvazio a bexiga, sacrifico meio-cigarro e giro uma colher na xícara de chá até o chiado da louça me hipnotizar. Isso sossega meus pulmões para que o retorno à posição horizontal não seja uma premissa do suspiro final.
Demoro a notar o apito da chaleira, que antecipa uma investida mais furiosa do vento. A essa altura, ele já deu a volta na coluna do prédio e entrou pelas venezianas entreabertas do meu quarto. A corrente atravessa o cômodo, faz a curva até o banheiro e, pela ventoinha, encontra a saída, do outro lado da construção, pela área de serviço, como o ar atirado na boquilha do instrumento, passando pelo tudel, obedecendo a escolha das chaves por todo o percurso, completando a curva no final do corpo até se libertar pela campana em forma de música, um si grave em respiração circular, simples e infinito, que já me falta gás para entoar com igual destreza.
Respira.
Puxa o ar, solta o ar.
De novo. Para dentro. Para fora.
Aspira em três tempos.
Expira em quatro tempos.
A porta do quarto bate e encerra a sinfonia.
Alex Xavier é um jornalista refugiado na ficção. Autor do livro de contos O Teatro da Rotina (2018, Patuá), participou das coletâneas Não Pretendia Criar Discórdia (2017, Giostri), Eros Ex Machina (2018, Alink), Era de Aquária (2019, Oito e Meio) e Ruínas (2020, Patuá). Membro do coletivo Discórdia, produz zines para feiras de publicação independente e ministra oficinas de escrita criativa.