I
Um homem sem lar é ainda assim homem
sem o mistério das paredes
sem o cansaço de uma profissão
sem o olhar de um relógio para calcular seus atos, livre de tudo que há do lado de fora,
mas ainda preso com o que há do lado de dentro, sem fome nem forma,
não consegue se livrar do sofrimento,
prisão ambulante que ele alimenta e que o devora.
O que vêem os seus olhos vazios?
Sentado no ponto de ônibus, não vai embarcar, assisti a tudo e a todos passarem,
aguardando passar o que te dói…
II
Deve haver um lado de fora,
viver não pode ser o contínuo
lamber das feridas que se
finge não ter.
Olhos invertidos submersos
num sorriso oco…
Que nome tem esta felicidade triste?
Tanto espaço sem ocupação,
Rimando e tragando toda potência com um Não.
A imensa gravidade que não é intensa,
leva a folha arrastada pelo vento:
um sopro engolido que nunca
foi digerido…
III
A menina que morava do lado de fora, perdeu a chave, papai e mamãe não foram
encontrados, não tem mais irmãos, não há quem possa abrir a porta. Sem imaginação está
trancada, se esqueceu do que havia lá dentro, se recorda das paredes e do chão, um oco
sem recheio avistado em seu sorriso ligeiro.
Do lado de dentro, só órgãos e toda a frieza da anatomia…
IV
É noite dentro de ti, o vento sopra as folhas das árvores para o chão, embrenhado no
caminho que só seus pés conhecem, você segue sem bússola, com o desconforto dos
tênis molhados, se abaixa para dar o nó, no pé direito, desiste porque as gotas da chuva
machucam seus olhos. Esqueceu os óculos em casa, agora a distância se tornou
inalcançável, com mais um passo, você sobe na corda bamba, sem picadeiro, plateia ou
circo, você está sozinho. A lanterna do celular está quebrada, não existe luz no caminho, as
suas mãos pálidas estão sob seu rosto, “olha para fora!”: diz o grito que você guardou na
memória, disparado em looping.
As folhas seguem em queda, uma delas pousa em seu ombro, como um pássaro sufocado
pelo ar. Você está cansado, o estado de quase requer muito esforço, as suas lágrimas se
misturam ao temporal, senta, tira o calçado, as meias encharcadas e com a barriga pra
cima, você olha pra noite se dissolvendo sobre você que agora é ela…
Fernando Rocha é paulistano, nascido em 1981, graduado em Letras, professor na rede municipal de São Paulo, autor do livro de contos Sujeito sem verbo(Confraria do vento), da novela Os laços da fita (Penalux) e Afetos (Penalux). Tem um conto na antologia“Descontos de fadas (Alink) e Pouca Pele (Alink). Possui textos publicados nos portais: Mallarmagens, Amaité Poesias & Cia, Diversos e afins, Revista Gueto, Incomunidade, Letras Inacabadas e Letras et Cetera.
Uma resposta
Gostei. Parabéns pelo texto.