
Crédito: Paul Klee. Embrace. 1939.
A mariposa debate-se dentro do armário suspenso da copa, ansiosa por libertar-se. Parece forte como um ser humano.
“Hoje compreendo”, arrisco-me a dizer. “Esse sonho agia sobre mim como uma sentença, mesmo naquela idade, do remorso por eu haver proporcionado tantas humilhações a meu pobre amigo. Pelo repugnante e inevitável prazer que me dominava enquanto lhe infligia, sem que ele percebesse, dores morais, em meio a situações que o constrangiam perante outros colegas. Se fecho os olhos por um momento, posso ainda ouvir o rumor ritmado e estonteante dessa mariposa, que eu imaginava grande feito um morcego.”
Ester parece iniciar um sorriso, não percebo ainda de que gênero. Ela é delgada e baixa, lembra uma menina, mas não que essa impressão, por vezes sugestiva, possa atenuar a irritação em meus olhos enquanto a observo. Há meninas quase tão más quanto Ester, se é que não houvesse ela própria sido sempre assim.
“Então, quer que eu continue? Ou passamos agora à sua história?”
Ester espanta, com um gesto, uma lenta porção de fumaça.
“Suas pretensas perversidades são muito comuns. Se bem que eu não esperasse mesmo nada muito impressionante. Mas ainda não estou pronta. Prefiro que conte mais.”
Ester e outro olhar percuciente. Mais me faz culpado sua ênfase sarcástica. Enquanto segue na sala, com algo de sinistro e delicioso, a conversa, chego a pensar como se faz oblíquo, quase doentio, o modo como preparamos a tarde para nossa nudez. De fato, nada há de complexo, embora nem sempre se tenha coragem de admitir isso. Trata-se de instintos, o que há de mais antigo no mundo. Sabemos, Ester e eu, sem o enganoso néctar do lirismo, que o instinto nos move um ao outro. Mas não sabemos o que move o instinto. Ou o que nos move a ele senão ele próprio, fechando um absurdo ciclo sem chave, pois o que realmente conta nunca nos é ensinado pela razão, quando muito por outras nossas forças.
“Quer saber como morreu a irmãzinha dele?”
O rosto de Ester nada revela, enquanto segue meu relato. Suponho que para isto sirva o silêncio, para ouvirmos o que não nos querem dizer. Também para que se renovem todas as chances de dizermos algo mais, antes do emudecimento. De erguermos um gesto antes da paralisia. Para não nos dizermos, quando tarde demais e na posse da melhor palavra, que estamos hoje morrendo de não a termos dito. De, ao gesto, não o termos deflagrado. E ao amor, por faltar-nos o simples dom da coragem, não o termos inventado.
“Não tenho mais que me lembre. Outro dia… Vamos, sua vez de me enganar”, brinco.
Eu esperava que ela mentisse, e ainda assim excitava-me ouvi-la, pois sabia que, de toda forma, discorreria sobre alguma pequena maldade. Mas, quando é assim, como para fazer-se superior e notando minha pressa, ela se demora mais que o normal. Não posso negar que a desejo, isso desde a primeira vez que conversamos na cantina. Mas não pensei que continuaria a desejá-la. Eu a desejo muito e além de meu controle, e isto confirma o pior: sei que isso é verdade, porque foi a última coisa que descobri. Sei também que a mariposa a me atormentar no antigo pesadelo continua voejando pelo mundo.
“Vamos, Ester. Agora é sua vez.”
“Você quer mesmo saber? Acha que vai se sentir bem daqui a alguns minutos? Ou vai ser como da outra vez?”
“Vamos, Ester. Não sou um menino.”
Suas palavras passam a minar as paredes de minha calma, encadeando-se entre frases curtas e longas: Ester e sua habilidade de instilar imagem após imagem, inofensivamente, porém todas com o efeito de um veneno insidioso e como intolerável a quem, de alguma maneira, as viveu, que é esta a única forma de impressionar, quando alguém nos repete com clareza o que amargamente já sabemos, por fim passando a espicaçar-me os nervos, como se não desse por isso. Não pretendo pedir que pare, aqui se dá o desafio. Fecho os olhos, necessariamente, entrevejo meu antigo sonho, as portas do armário da copa abrindo-se de um golpe, deixando ir-se a minúscula mariposa, eu num instante como a dizer-me, perplexo: “Não é possível que fizesse todo esse ruído!”, assim como Ester não parecia tão perigosa, sendo também delicada e pequena.

Perce Polegatto é um escritor nascido em Ribeirão Preto, formado em Letras, com especialização em Estudos Literários. Lecionou matérias da área de Letras, como Gramática, Literatura, Adaptações literárias para o cinema, Produção de textos e Semiótica em diversas escolas, principalmente no Ensino Médio, e em três instituições universitárias.
É autor de 5 romances (“Os últimos dias de agosto”, “A seta de Verena”, “Marcas de gentis predadores”,“Projeto esvanecendo-se” e “Teus olhos na escuridão”), 4 volumes de contos (“A canção de pedra”, “A conspiração dos felizes”, “Lisette Maris em seu endereço de inverno” e “Inconsistência dos retratos”) e um de poesia (“Diário contra o destino”). A metalinguagem, a busca da identidade humana e o questionamento existencial são algumas das principais marcas de seus textos, divulgados também no site “Aventura do dia comum” ( www.percepolegatto.com.br ).
Uma resposta
Ester e a fuga e os ruídos não mais que nossa própria audição. Como um espelho sendo aparentemente apenas desembaçado. E quando lembramos que as mãos que desembaçam são mesmo nossas? Delicadas e pequenas mãos tão eficientes na limpeza do espelho inocente e flagrante. Apenas um objeto feito pelas mãos do homem. Uma mariposa mais olha do que vive. Relembro que Ester nunca é tarde demais; não há mais como eu não viver o que vivo. Porque desafiei Ester, deixei aberta a gaveta e meu ser sem chave.