tereré, vinho, ruas e fronteiras: a prosa de Josyel Carvalho

O Dia e a Noite, Humberto Espíndola, 1970
 
Tereré com vinho

Sentado à margem direita do rio de dois idiomas, um único vício e o mesmo prazer, Dionísio nos serve na boca o leite do caos. As águas vestidas na temperatura da fronteira fazem o som ambiente e ditam o ritmo dos nossos corpos; deitamos colados na mesma coreografia. A Lua, à espreita, assiste pudor e convencionices desaparecerem rio abaixo.

Boca a boca, lambuzados em ervas e vinhos, soluçamos o tempo e evocamos para nós todos os gozos perdidos na guerra. Banhamos de prazer os amores afogados em sangue. Em êxtase, cada um a sua vez, chupamos o vício, agora verde uva, enquanto nos reencaixamos em posições de guerras vencidas, latejando todas as armas do mundo em segundos de mortes que justificam o satisfazer de vida.

Ao som do mato, matamos a vida presa em conserva, conservamo-nos um dentro do outro, acendemos nossas velas ao altar dionisíaco, agora já soletrando orações de prazer em sorrisos castelhanos. E assim, seguimos nós, visitando mundos outros no mesmo curso de rio. Longe das carapuças cotidianas.


Avenida Andaló

Vestida de preto, sedutora e arrogante, controla-me com verdes olhares que me permitem perambular por seus caminhos. Atenção! Os mesmos olhos, só que vermelhos de paixão, me freiam e mandam parar. Segundos eternos que divido com você que já é o meu caminhar.

Você é o espelho de muitos sorrisos; e permanecer no seu brilho ou viver em suas entranhas é muito mais frieza matemática do que qualquer outro sorriso de carne, osso e sangue nas veias. Seus ouvidos são ecos de comemorações e protestos, com um pretexto escondido para te namorar em silêncio.

Em você gozo prazeres outros e conquistas que quase sempre não são minhas. Em sua companhia já torrei no sol; morri num pênalti e renasci num grito de gol seguinte, e embebedei-me ao seu lado com a lua sentada em meu colo.

Por vezes faço de você meu desvio; outras tantas, eu desvio-me de você, sempre bem vestida e iluminada a acalmar outras tantas escuridões. Sempre tão solicitada, dona de tantos destinos, tenho preservado o meu direito de te abandonar por outros caminhos!


Praça Brasil, Wander Melo, 2007

Ruas da minha fronteira

Nuas. Sempre nuas! Elas tinham as cores dos nossos dias; reluziam com a luz do sol, brilhavam até mesmo com as gotas de chuva, assim como eram destaques no aconchego da lua, que vez ou outra pousava na porta de nossas casas. Nós nos amávamos e elas nos seduziam na simples existência. Ah…infância! Nos nossos banhos de liberdade e vento, soltos, as águas escorriam por suas entranhas, nos possibilitando inúmeros outros caminhos.

Estavam sempre dispostas. Algumas de corpo reto, outras de curvas mais sinuosas, elas sabiam guardar os sonhos de guris. Preservavam fielmente as histórias da pouca idade. Mas também tinham seus períodos complicados em que nos distanciávamos. Eram seus momentos de privacidade involuntária e que terminavam apenas com a ação daquela lâmina afiada que invadia todas as suas intimidades.

Mas, a cada novo encontro, novas alternativas e os velhos e bons amigos. E nós éramos muito unidos! Apesar de alguns serem apenas vizinhos, elas eram todas de todos nós. Todo dia, mesmo sem despedida, planejamento ou qualquer ameaça de convencimento, levávamos um pouco delas para debaixo do chuveiro, ou, para o interior de algum balde, tanque ou bacia que nos abraçasse em limpeza.

Naquele tempo elas ainda não eram vestidas de preto; não trajavam essa mentira. Elas estavam sempre numa nudez inocente e despretensiosa. No entanto, hoje vivem mais tristes, de luto, talvez pela morte de tantas infâncias. Já não têm a sedução de outrora; apenas desfilam seus vestidos negros, rasgados, remendados e muitas vezes sem a mínima condição de nos receber, sequer, para um simples abraço! Sentimos saudades delas, e acredito que deva ser um sentimento de reciprocidade.



Imagem: Rosane Lima, 2014

O craque que eu não fui

Hoje, ao encerrar a carreira que eu não tive, num jogo de despedida do atleta que eu não fui, um atleta que eu nem conheci, num estádio lotado pelo vazio e que ainda ecoa o meu nome em silêncio, agradeço a Deus pelo enorme privilégio que eu não tive.

Recordo-me agora das artilharias que não disputei, do bom exemplo que não fui, dos gols que eu não marquei, dos passes que eu não dei, dos dribles que não criei, e das jogadas espetaculares que eu sequer participei.

Ah, foram tantos os títulos que eu não disputei! Lembro-me de quantos jovens que não gritaram meu nome e eu não influenciei. As camisas que eu não autografei; as entrevistas que eu não dei; as viagens que eu não fiz; as provocações que sequer existiram.

Foram tantos os clubes que eu nem passei, tanto quanto os contratos que eu não cumpri. As contusões que eu não tive; os companheiros que nunca existiram; as propagandas que eu não fiz e o dinheiro que eu não ganhei. Ou seja, encerro hoje uma história que jamais existiu, mas, graças aos dribles de algumas letrinhas, pôde muito bem ser inventada.



Josyel Ribeiro Carvalho é jornalista, nascido em Bela Vista, Mato Grosso do Sul, fronteira com o Paraguai. Atualmente mora em Campo Grande, mas viveu por cerca de 20 anos em São José do Rio Preto-SP, onde por uma década escreveu crônicas diárias para a Rádio Líder Fm. Em 2017, integrou também a primeira turma da Escola de Escritores.

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