TORPOR JANDIRA ZANCHI

 

Ilustração: Gilad Benari

 

Barreiras, fronteiras, o tempo andava, naufrago, tímido, ondulante naquelas tardes ímpias, abertas no cais, quase soluçantes na praia, perdidas, diria. Poderia viver assim por milhões de anos, acreditava, medindo os minutos, rastejando o véu da noite, abrindo estrelas, se encompridando no nada, vergado de ócio, de jogos inúteis, de palavras soberbas, rígido nas missivas, largo no vazio do esquecimento.

Quando a perdera um volumoso torpor o aniquilara. Nas madrugadas daquela cidade macia, maliciosa no doce inodoro de suas brumas, gotejou cada segundo do que deveria ser uma dor. Não fora. Foi o imenso vazio que o assombrou.  A percepção do nada. Conceitualmente se impressionou da própria lentidão, afinal, vivia em um lugar seco e pré-fabricado como as asas de um deus. Talvez pequeno, um pouco sufocante naquele planalto de asfixia, palavras encorpadas nos bares em que os pulmões de alguns santos floreavam poemas distanciados e arrojados em tom barítono de alguma província da idade média. Mas, enfim… como não percebera? Não lhe fora suficiente o azul sufocante do céu nos bosques metrificados e compostos,  espelhados no oriente do mundo, ainda que brancos, truncados em suas almas longas, latitudes de ventos empobrecidos.

Só mais tarde entenderia. Emudeceu nas sombras de seu bairro . Para que os palcos, as virgens, as não virtuosas, as matérias compradas e, tão óbvias, sorria, dos compadecidos de sempre. Doía-lhe aquela solidariedade, queria motivos para rompimentos, cenas, um sabor de tragédia, um fim composto e dramático para o poeta que era. Mas, não, aquela compreensão, os sucessivos jantares das boas esposas daqueles amigos… como defini-los? Exagerados ambulantes de óculos (ou não), de muitas palavras, vinho e madrugadas, arrombamentos e enfrentamentos com as musas e com aquele pequeno céu.

Sempre amara aquele sabor de aldeia enquanto ela e a sua filha estavam por ali, mas, sabe-se lá o que queriam? Era um homem assim desordenado, os jornais, os livros, os poemas e os ensaios eram o seu ar, avolumava-se nos volumes das prosas das grandes mentes, respirava o ar, eterno, das bibliotecas e das marés das civilizações.

E fora bom amante sabia, também punha o pão, está certo que ela trabalhava muito (bem mais que ele), de uma forma ordenada e comprometida, e foi crescendo, os cargos. Deveria ser isso. Ela mudara, as roupas, os hábitos, aquele garoto. Um garoto, fazia academia, como ela não percebia? Acreditava naquele sujeito? Vendia-se por sexo, por admiração, por adulação? Teria sido assim tão difícil viver ofuscada pelo ego dele, pelo derrame da sua emocionalidade, pelo exagero das suas visões… fora, com certeza, deixava um homem como ele por aquilo. Se fosse um homem comum ficaria derrotado, mas, entendeu, e tanto e de forma tão profunda que a perdoou. Ela estava agindo como um homem de meia idade a quem o sucesso no trabalho afeta de forma a não mais aceitar a linha da integridade e precisar de alguma maneira enganar, ter de forma corpórea e visível uma medida daquele sucesso vazio e destrutivo que a sociedade obriga a procurar.

Talvez fosse, doía um pouco perceber,  tão superficial quanto ela e muito mais arrogante, já que batia com mão firme nas honras (tão idiotas) da literatura. Ah, mas, artistas e escritores… não lhe preencheriam, não focariam na tragédia, ainda que obvia, dessa crise de meia idade.  Teria que degusta-la na pedra, na água, no voo silencioso da noite, não de noites embriagadas de sonhos e perfuradas de entusiasmo, antes, nessas que são apenas escuras e silenciosas, um radar para o cosmo ímpio e ameaçador, e que acabam desaguando em tardes como aquela, vitoriosas de sua boa saúde, sem a corrupção de muitos passantes. Lentamente andarilhas, cientes da quase eternidade que. de  tão longa, em si carrega o eterno, o fixo, o pontual, o indiferente e, misteriosamente, o piedoso.

Sorriu… descobrira tudo aquilo naquela única estadia na praia? Ou apenas se afastara do seu ego (tão graúdo, se ressentia, de onde apanhara tudo isso, afinal não apanhara tanto quanto os outros garotos, sempre batera bem mais, não que se orgulhasse, mas, enfim, não era uma compensação, talvez viesse daquela fácil percepção de infinito que sempre tivera, enfim…) e suspirava mais forte, agora era o meio de uma tarde fria, de céu muito aberto e sol amplo, não teria amado então? Era apenas ego? Se ela não lhe fazia um bom espelho logo não interessava mais, era isso? Ou apenas teria uma imunidade bem construída? Deveria sofrer mais? Desprezaria os fracos ou óbvios? nunca saberia, mas, estava liberto, conseguiria voltar para aquela rotina de muitas sílabas, falsas interrogações e madrugadas sem conclusões.  A mulher não o destruíra. Agora ela era apenas isso, a mulher. Apenas humano então, na crise, considerou, nos reduzimos ou verificamos o cerne da coisa, se podemos nos defender ou não. Devem acontecer modificações cerebrais, ia considerando, apagando aqui, iluminando lá, diminuindo a ênfase e a amplidão (por isso procurara um espaço físico aberto, para diminuir o interno).

Seu próximo livro teria um tom de aconselhamento amoroso, conseguiria sofisticar esse papo de autoajuda, dar um colorido mais clean, talvez irônico, quem sabe um pequeno romance descrevendo uma crise de maturidade, talvez mesmo a sua, a diminuição de vigor físico e a manutenção daquele ombrear com os deuses, essa espécie de fanfarronice e vida paralela que tão bem faz a artistas e criadores de cenas, de duvidas e tal.   Outra mulher, mais jovem, mais dedicada, dócil ao seu ego (não pode deixar de rir em perceber que tomava a escolha da ex como meta), enfim, todavia, porém, era apenas humano, ainda não descobrira causa ou ser por quem matar ou morrer, apenas, então era verdade, sabia viver por si, para si e, no além de si, só para deuses criados para conforta-lo.

 JANDIRA ZANCHI

 

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