
Assim, calculando o circuito dos ares e o calibre da aflição, dilacera-se a inocência.
Cipriano viu o encanto se desvirginando diante do seu olhar perplexo e um desassossego fazendo cócegas cruciantes na gruta de um dos ouvidos e como não lhe haviam palitos algodoados que alcançassem bem lá no fundo para se coçar, ele, influenciável, por ouvir de terceiros, despejou um tubo de água oxigenada 10 volumes pelo caracol da orelha adentro, fato que, de insólito, causou uma borbulheira infernal de sal-de-fruta efervescendo no âmbito da coceirinha original e logo depois num crescendo desembestado foi virando um borbotão de espumas descontrolado e, esquisito, simultaneamente produziu a uma titilação no badalo da glote provocando um pigarro raspento, raspou, e sobre esse efeito concomitante concluiu sem a menor possibilidade de erro que o aparelho auditivo tem ligações profundas com o tato gustativo.
Assim, ao limpar a goela ouviu a voz irritadiça do Alívio dizendo:
-Porra, até que enfim!
Então, uma gosma mista de vagina antiga e sangue dormido invadiu-lhe a cidadela do cérebro e tomou posse definitiva do seu paladar pela vida afora.
Ainda que curta, vai só até ali onde a vista turva, a estrada para Quietude prenunciava atilhos de léguas de promissão. Carradas talvez. E, a fronteira abstrata que define o estar vivo como uma mera aplicação do maniqueísmo ao pragmatismo da existência diária, de habitual, é rude, canga bruta, fatal para os utópicos de calças curtas, catecúmenos na cátedra, tendo em vista que o bem pode ser bem mau e o mal, óh, o mal pode ser dos mais bem bom.
O fato é que os “ainda aqui” egressos de enclausurados tempos Vargas, coturnos tempos meganhas e outras vergas no lombo, mais soturnos ainda, e que cursaram a anacrônica idade do hastear pêlos pubianos como bandeiras de protestos, pretextos e melindres, entraram na fase seguinte, o desbunde da autocrítica, etapa libertina e baldia, passional e vândala, saindo direto de uma noite longeva, esquizofrênica, pauleira, chumbenta, blecaute de mentes e nocaute de corpos e sabendo de antemão que mais do mesmo poderia vir em proporções batalhonicas.
Cipriano viu a vida várias vezes pelo binóculo do cínico antes de achar seu monóculo de cético que, distraído que só, esqueceu numa mesa de sinuca ou numa sala de cinema francês. Com o passar da lama sobre a pele da agonia, textura do asco, a alma veterana e calejada deu para amarrar pileques escatológicos e estúpidos, cerveja e cana, cana e cana, em constante companhia de sustos líquidos e de silêncios de pedra nos botecos escusos das noites subterrâneas. Nunca duas vezes no mesmo antro. Outras vezes em apartamentos sem o mínimo sabor de gente, tudo sem o menor clima para rizomas ou rotinas que por ínfimas que fossem ainda capazes de conferir alguma serenidade a quem navegava nas correntezas instáveis dos oceanos humanos.
De feijão-com-arroz mesmo só a paixão exacerbada, entremeando todos, extremando tudo, palpável, latente, carne mascada pronta para a engula: a primeira amargura nunca se esquece posto que chama, paixão de primeiro incêndio, queimadura de 1º grau, aquela estrada de terra que sai dos olhos e entra coração adentro como facão cortando imbiras que nos ligam aos nossos próprios museus e vão deixando nos braços uma piniqueira de pó de jurubeba de nunca esquecer, agulhas na memória, punhais da saudade.
E os anos “passionando” pelo vão da vida, Jimmi, Janis e Jim já tinham cantado pra subir em meio a viagens impregnadas de cravos e jasmins e mandaram dizer que não se deve vomitar sozinho em banheiro alheio.
Morrer passou, bizarria sem tamanho, a ser uma conseqüência espúria, sem glória ou pompa, morria-se em porões infectos, rios desertos, aspirações doentias e imaginários distantes e, vez em quando, em mulheres desconhecidas, e os anos “passionando” pelo rasgo do tiro.
Velhos amigos não se cumprimentavam mais nas ruas perigosas das cidades sitiadas de arrogâncias e medos e naquele rancho perto do Paracatu deixei que você voasse nas asas do meu olhar:
-Dorme, Peoa bela, sonha a vida, só quem se doa ao mundo pode sonhar com ela!
Naquele tempo, com o cansaço espancando os olhos só nos era servido o pânico dos pesadelos como jantar e fugas no desjejum e os anos “passionando” pelo vau do tempo. Num deles até quisemos nos casar na suposição de que a verdade vestiria roupas novas nas velhas mentiras e a paixão campearia solta por entre nossos mais acalorados desencontros pelo resto de nossas vidas, que um moleque nos faria ninar a valentia clandestina e acordar a covardia da sobrevivência de cabeça baixa, ambos cansados de tanta porrada em pontas afiadas de irreversíveis facas. E insistiu a paixão. E como. Mas já cultivávamos alguns pudores: não suportaríamos que o mundo nos visse nus de devaneios, mãos vazias de panfletos e lambuzados de olhares auto compassivos.
E os anos “passionaram” geral pelo footing da história semeando cãs perversas e nevralgias compridas, novelos embaraçando nos nossos corações apalermados de ojerizas vãs. A apatia dos corpos se instalou nos ânimos e as ideias, essas piabinhas prateadas, ficaram ariscas demais para o anzol do pensamento. Precipitaram-se os abismos sobre as coisas antes claras, instalou-se o escuro. E os trecos que antes eram aqui, no já, ao toque dos dedos mudaram-se para detrás do mundo, para detrás dos olhos escusos, para detrás do medo. Olhos inúteis. Inúteis trecos. E assim, colecionando os estragos do dia fomos, pouco a pouco, calculando o martelo das horas.
Cipriano hoje, no período da manhã, contempla passarinhos nos parques da cidade. Às tardes, confecciona gaiolas de taquara e pita que barganha por três vinténs na Feira Hippie da Praça da Liberdade. Nas noites intermináveis de pijama e abajur, ele elabora as mais variadas licenças poéticas (rudes poemas rudes, diz ele) tendo como matéria prima umas metáforas de estrume que lhe enchem o vazio depois das lembranças e perfumam-lhe o alívio depois do suor. Sofreguidão oca. É como ansiar por uma existência esconsa. Adotou a política do não-ouvir, não-ouvir que faz o não- saber, não-saber que faz o mudo, o mudo de si, mudo como um deus e um deus boçal e blasé como o sensaborão devia ser o ar bem antes do mundo se ser.
Estático, já não nega nem afirma nada, apenas olha a finitude do alto dos seus sapatos. Tanto lhe faz como tanto lhe fez o verde, o cinza, o preto, o gordo, o fino, a Vulgata, a puta que o pariu, Les fleurs du mal, Verlaine, Baudelaire ou Rimbaud, nada.
Nada. Desapaixonadamente nada.
Em ultima instância, inutilmente, nada.
Assim, nula em influência, restou à paixão calcular a superfície do ar e cubar a distância entre o que não foi e o que poderia ter sido se...
...se não houvesse se perdido numa Estação de Silêncios aquele trancelim de ouro que triangulava o colo alvo de Lana quando o acaso, de livre e espontânea vontade, os comprimiu numa cama de estrada, nos tempos de chumbo, nas beirinhas da solidão e lhe sussurrou no labirinto das cócleas, vindo dela, um conto de Amor, um canto de Amor e o paladar de Cipriano, assustado e confuso, borbulhou no instante do esplêndido, voltou ao passado, arranhou a faringe e acusou na garganta o sabor de adeus.
No trancelim perdido, uma medalhinha em ouro, nela, gravado, um pedido de amém.
Wander Porto é de Patos de Minas onde vive suas idades desde 1950, trazendo na bagagem dois livros já esgotados, SOPRO DA MADRUGADA, de poemas e MUITO PRAZER, TODO MEU de contos ligeiros. No mais, além de um impermanência andarilha para lapidação de vivências com as ferramentas do conhecimento e voraz tradutor de desejos, é coadjuvante de canções e artesão de poemas.
Uma resposta
Wander, poeta que estilhaça o belo acima de qualquer medida. Enorme!