TRIPTICO DA MORTE: Luís Palma Gomes

 

Ilustração: Leonardo Conceição

 

ANTECIPAÇÃO

 

O tiro já partiu.

 

De nada vale o gesto brusco,

a finta, o disfarce desmazelado

que há muito ensaias.

 

O sol desce nas tuas costas

e nem isso notas, porque todos os dias

parece-te quente o pão entre os dentes

e, além disso, há sempre alguém que te cumprimenta

de forma ainda convincente,

 

O tiro partiu desde que nasceste,

porque o fim e o início são a mesma coisa,

se os observas à distância de um livro muito antigo.

 

Ali, onde a terra se levanta levemente,

e as ervas pousaram depois inconscientes,

podes já tu estar antes mesmo do tiro chegar,

porque é no som da pólvora,

ou mais intimamente no estalido do gatilho,

que passaste realmente a acreditar.

 

 

A ESPADA

 

«Depois falamos», disse-me ela,

deixando-me na mão o aço em brasa da espada.

«Quando arrefecer…», profetizou ainda sem esclarecer.

Percebi que iria voltar um dia.

O restante especulei: inventei sombras, reverberações

nas paredes da casa.

Perscrutei o destino nos olhos do gato,

que me eram de coruja.

E o outono acabou por chegar,

quando a espada arrefeceu,

fazendo-se então tíbia sensação,

canto que embala e prepara.

Ouvi o eco que já não parecia sê-lo.

Se fosse, era apenas o eco do eco do eco.

A boca a mexer-se no espelho, sozinha,

sem pensamento,

instinto animal que não entende, mas sente.

«Não tenho medo, tenho pena»,

disse-mo meu pai.

Compreendi tão profundamente,

como se compreende o esquecimento,

um totem magnífico

cuja areia vai cobrindo sem ritual, nem plano.

 

A luz era agora amarela, daquela cor que irradiam

as páginas das revistas antigas.

A ideia de um osso ganhava vida,

os pássaros partiam para sul.

Se voltaria a vê-los, ou não, só no inverno saberia.

 

A GOTA-CADÁVER

A gota espreita,

reflete o som e a brisa que a agita,

alucinação simples que a rodeia.

 

A medo incha, inflama-se,

ajusta-se à ponta da torneira,

saco de moléculas,

pequeno universo em expansão.

 

Por um instante hesita.

Parece repudiar a sina,

insistir uma vez mais

 no incrível regresso à nascente.

 

Quando se lembra que não se lembra,

cai exata, entregando-se  fóssil,

emancipada ao prazer curto da viagem,

ao destino-cadáver de um oceano maior.

Luís Palma Gomes, nasceu em Lisboa em 1967. Estudou Engenharia Informática e Ensino da Informática na Universidade de Lisboa Durante a sua juventude, escreveu e publicou poesia para coletâneas, suplementos e jornais. Pertence ao Teatro Passagem de Nível da Amadora onde foi ator, sendo atualmente autor/dramaturgo residente do grupo, tendo levado a palco três peças suas: A MouraDesnível Bar 2 e o Último castro antes de Roma. Venceu o 7º Concurso de Poesia Santo António da Charneca e 4º Concurso de Haicai de Toledo – Kenzo Takemori. Atualmente escreve sobretudo poesia e teatro, aventurando-se também como contista. Publicou dois livros de poesia, uma peça de teatro e um livro de contos. Alguns deles podem ser encontrados na Amazon.com. É professor de Informática na Escola Profissional de Imagem.

Uma resposta

  1. Eu adoro seus poemas, meu amigo Luís. Gosto muito também quando você os interpreta. A interpretação desse "tríptico" está divina. Muito boa sorte. E obrigada minha amiga Jandira pelas portas abertas. Beijos aos dois

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