Ritual
No ônibus, uma moça atravessou o amontoado de seres humanos e passou por mim, bem na minha frente, e eu que olhava pro chão pensei ter visto no seu rosto um sorriso estranho. Ao tempo de eu encontrar a palavra “cadavérico” na mente ainda sonolenta, ela já havia passado e estava longe, de um jeito que não me deixava mais ver seu rosto. O circular seguiu viagem e eu pensava ao longo do caminho que na noite passada mais uma vez nem toquei nos meus pincéis. Mais uma vez, por muito tempo uma pintura seguia inacabada. E já imaginava um péssimo dia de trabalho pela frente. Não olhei mais para a moça e, quando desci do ônibus, não olhei para trás. Um calor nojento. Na rua, os mendigos de sempre, nos farrapos no chão e nos ternos que andam. Os prédios lascados e a vidraria escura. O calor, que faz o mendigos mais fedidos e sonolentos, estendidos, e as testas e pescoços dos senhores de terno mais suados. Maletas leves que balançam nessas mãos, coxas gordas suadas embaixo do tecido dessas calças que se esfregam. Depois de alguns passos percebi a presença. Contra o amarelo e o preto gritantes da luz do sol e do asfalto fervente, erguia-se a sombra a mais ou menos uma dezena de metros. Mais alta que os homens e mulheres que caminham. Fugi com os olhos e dobrei a esquina. Chegando à rua da “firma”, penso o que me ocorre pensar sempre. Uma rua que não tem uma árvore espelha bem como reagimos ao deserto do novo mundo: produzimos mais areia. Na rua inteira, nenhuma maldita árvore. Todo mundo apodrecendo por dentro e por fora, ninguém adivinha por quê, mas todo mundo só compra mais areia e tem ideias geniais para os seus “projetos”, que vão ser um sucesso. Coisas geniais como o negócio do Adamastor.
— Firma de Serviços Básicos e Gerais Formada por Artistas —
Deus me perdoe. Diferencial anunciado logo no nome, diz ele. Ao menos plantasse uma merda de uma árvore na calçada antes. Ele estava no telefone, esperei terminar. Pregou o telefone no gancho com um tapa gordo: bom dia, meu Michelangelo, calor lá fora? Bom dia, chefe, quente sim (que que tu acha). Hoje vou te mandar aqui pra perto, [o serviço: Dona P, casa, Rua Tal de Mês número etc etc, parede precisando de uma mão de azul], coisa simples demais. Ok, entendi (coisa simples demais, sei bem). Certo, então, pra você deve ser tudo por hoje. Certo, até depois (…).
Saí, o endereço era próximo, na rua da praça. Coisa simples. Sempre que ele me entrega o serviço e diz “coisa simples”, das duas uma: ou o cliente é amigo dele e enrola para pagar ou é algum velho demente, desses moradores do centro, que conversa sem parar, a me segurar, atrasar o serviço e me cansar até o meio da tarde, depois de me obrigar a ficar pro almoço, pro café e pro tour do álbum de fotos da família. Sou capaz de apostar que inventam uma parede que precisa de pintura só pela companhia do pintor. Que que eu fiz com minha noite de ontem?, pensava enquanto caminhava. O quadro é pequeno, podia até ter terminado se tivesse sentado para trabalhar. A praça era o melhor muro de fuzilamento que o sol poderia exigir. No centro, debaixo de um guarda-sol, um homem que empunhava um livro grosso gritava como um berrante para pessoas que se aproximavam e o circundavam. Logo pela manhã, pensei. Na nuvem de ar quente que esmagava tudo, a camisa branca ensopada de suor estava colada na banha do corpo do profeta. Tudo carne. As pessoas ao redor, carne, quietas, prestavam atenção, pisavam a grama seca da área central da praça e balançavam as cabeças, afirmativas. O homem gritava que o sol, os mendigos e os reis gordos e sujos eram nossa punição. Passando, eu vi nos ombros de uma das fêmeas do rebanho, que vestia preto, uma capa estender-se aos poucos, como um tecido que estivera escondido, uma cortina de teatro — e deixando de reparar na capa voltei de novo os olhos ao seu rosto, ela olhava e sorria para mim. Não ela, ele. Os chifres longos, levemente curvos e quase verticais, marcaram a margem da minha retina enquanto eu virava o rosto e seguia. Os gritos do profeta mantiveram-se na distância.
Cheguei à casa. A velha abriu o portão de ferro pesado. Bom dia, bom dia etc. Na terceira frase, me chamou de “filho” — coisa simples demais — e puxou assunto comentando sobre a própria casa. Não repare a desorganização, meu filho, que está tudo em mudança e reforma, quase nos finalmentes, graças a Deus. O quintal era a terra de um cachorro magro, cor-de-rosa e desnutrido, algumas galinhas e um galo, que estava de guarda sobre uma mureta de varanda. Latarias e amontoados no canto. Na varanda estava a parede que me esperava. Abençoado — Meu Filho, — com um copo d’água sem gelo, enxuguei a testa e comecei o serviço. Após alguns minutos, o galo bateu asas e cantou, desafinado como um velho doente. Eu podia ouvir também que, na praça, o culto do berrante continuava. A sujeira dos homens que se deitam com homens e das mulheres que se deitam com mulheres é o nosso crime, era o que eu podia ouvir dos gritos compassados. A velha me disse então que os vizinhos reclamavam do canto do galo. Porque ele canta o dia inteiro, ele canta de manhã, de tarde, a hora que ele quiser, daí eles dizem que ele canta de madrugada, que incomoda, mas você vê, filho?, que pessoal sem coração, deus me livre. O galo desceu de seu posto e caminhou elegante até mais perto de mim. Perguntei à mulher o que ela iria fazer. Enquanto eu falava, ele berrou. Me virei no susto e num átimo vi a sombra. E no chão ao meu lado, batendo as asas, o pequeno diabo. Como, filho?, ela perguntou. O que a senhora vai fazer, com o galo, digo. Ah, isso aí eu já chamei o pessoal da prefeitura, um homem veio e olhou tudo aqui e disse que está limpo e que não tem problema, que o bichinho não tem perigo de fazer mal pra ninguém, de espalhar doença, nada. Perto de mim, o serzinho equilibrava-se às vezes numa pata só, enquanto me olhava de lado. A sujeira espalha-se pela vida de nossas crianças e jovens e destrói nossos lares, nossos casamentos. Eu segui a pintura pensando que, quanto antes terminasse aquilo, mais cedo iria embora para deixar de ouvir o homem de fé na praça — somente a fé… as mazelas… nossas mulheres, esposas e filhas… a obra… acreditai! — e o grito do galo, que bateu as asas mais uma vez. Sobre as minhas costas ele urrou num voo breve de reclamação. Fiquei em pé e enxotei o bicho. Para cortar o silêncio, perguntei à velha se o problema dos vizinhos era o barulho ou a sujeira. Eles falam que ele canta de madrugada e que incomoda porque não deixa dormir. E ele canta de madrugada? Eu não tenho problema nenhum, eu durmo, filho. Mas ele canta de madrugada e acorda os vizinhos? Então, os vizinhos filho eu já falei pra eles que o homem da prefeitura disse que não tem nenhuma lei que diz que a gente não pode ter um galo assim, na cidade. Então é de lei pra ter o galo o problema? É, eles dizem que atrapalha eles pra dormir. Mas… Desisti, engoli a pergunta e segui pintando, pensando agora que, o quanto antes, eu precisava sair dali para deixar de ouvir o profeta, a velha e o galo. A corneta de penas andava em círculos ao meu redor cantarolando e resmungando uma dança da chuva as aves. Que horas são?, eu pensava, não devem ser nove da manhã e esse bicho filho da puta que não para de cantar, o profeta na praça com seu suor escorrendo e seu corpo mole, a banha, a carne, recheada de merda, a alma, que não existe, suja, e o pior de tudo nesse quadro, imaginei, aquele umbigo pontudo que na cama mira a mocinha mal paga da vez, aquela que segura o guarda-sol; o umbigo para ela, de baixo para cima, como um olho que é uma boca de vaia, o suor da camisa no corpo pequeno da menina, e depois, hoje ainda talvez ao final do espetáculo, vende-se a camisa untada, santa, aos mais afetados do rebanho, pelo montante redentor que pagará outras novas camisinhas. — O galo seguia na dança — Até que tudo vire pó. Até que tudo seja somente pó. A sujeira nos eleva. 9:26. Amém. O farfalhar de leque das asas do galo, o gado na praça, essa gente toda, essa velha que… E a velha agora parada, reparei, escorada no batente da porta, olhava na direção do céu sobre o portão da rua. Esse homem é um abençoado, não é?, ela disse. Mandei a velha tomar no cu e saí. Deixei a tinta da firma para trás. Enquanto eu saía, a velha já pedia explicações no telefone, Adamastor? Adamastor? Desaforo…, e o galo de Picasso cantava sem parar, como se comemorasse ou praguejasse contra mim, prestes a explodir de tanto berrar. Na multidão da praça pude de novo divisar o manto preto e os chifres enquanto passava. Desviei o olhar, mas foi por pressa. Que se foda essa velha, esse galo, esse povo todo, eu pensava enquanto andava. Que se fodam também esses papudinhos de terno e fodam-se os mendigos até. O canto: que se foda — Amém. No longe, o berro do galo e o choro do homem. Que se foda. Em casa, pintei. Terminei aquele trabalho.
Esperei. Começou uma chuva leve e, até bem tarde da noite, esperei. Sabia que viria. Até que ouvi passos no chão empoçado lá fora. Aproximam-se da casa devagar até que param perto da janela. Ouço uma baforada que soa como um cavalo que se imaginaria grande como um elefante, levanto e vou até o quadro, que está ainda no cavalete. Razoavelmente satisfeito, pelo que fiz e pelo que sei: sei que o próximo será melhor e principalmente que saberei fazê-lo. Vem de fora o som da capa grossa que chacoalha debaixo da chuva, que agora começa a ficar mais forte. Com o quadro nas mãos, me viro e vejo que o trinco da janela está passado, mas logo ele se ergue sozinho como se empurrado pelo vento. A janela se abre e eu quase não diviso nada no escuro, mas um relâmpago revela a máscara sobre o rosto que nunca vi, uma enorme carapaça branca. Sempre a máscara. Um diria verei o rosto? “Cadavérico” vem rapidamente à mente. O sorriso estático da caveira milenar me encara. Seu corpo escuro parece o de um homem forte, grande como os gigantes das lendas talvez. Como sempre, não reconheço nenhum dos símbolos que pendem em correntes de seu pescoço, que é visível sob o manto agora porque ele ergue o braço. Enorme, o braço entra pela janela, dobrando-se como um guindaste. Caracteres estranhos para mim também aqui e ali, marcados como a ferro na carne escura e peluda do monstro. Os dedos pontiagudos estendem-se calmamente. As unhas esperam. Entrego o quadro para a mão gigante. Ele o leva para fora e, sob a chuva, olha brevemente para a peça enquanto se vira. Curva-se sobre ela, animal a se alimentar. A máscara se move, mas não posso ver seu rosto enquanto de costas para mim ele devora a pintura em instantes. Toda a cidade deve ouvir as mordidas de urso, os estalos da madeira e os gritos — como os gritos de corpos que caem, que despertam da pintura triturada, que vêm de onde eu nunca penso ser possível, do cenário falso, vêm da mentira que inventei para este mundo num instante breve de vida e para a morte. Satisfeito, ele me olha mais uma vez antes de ir. Sua voz tem um homem e uma mulher ao mesmo tempo dentro dela. Errou no azul desta vez, mas cumpriu, ele diz. Enquanto ele caminha escuridão adentro, vejo sob um relâmpago os seus chifres, que desafiam os céus.
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Hugo Giazzi nasceu em Catanduva (SP) em 1991 e nunca publicou livro algum. Escreve contos e às vezes os publica no blog Harpia do Inferno (harpiainfernal.wordpress).