Um homem de bem: Cesar Augusto de Carvalho

 


Escrevo trancado num quarto pouco iluminado, quase uma cela. Tem uma mesinha, uma cadeira velha e uma cama, tão ruim que só não durmo no chão por causa dos ratos. O lençol, velho, rasgado, cheio de manchas, tem cheiro de leite azedo que, misturado ao bolor do colchão de palha, penetra minhas narinas. O mau cheiro é tão forte que sinto até daqui, sentado à mesinha. Não vejo a luz do sol há dias. Talvez esteja condenado. Até agora, ao menos, não me torturaram.

Desconheço meus algozes. Nem sei por que me prenderam.  Só pode ser algum grupo, desses subversivos, querendo minar as bases do Estado que ajudei a construir. O estranho é que a maioria desses grupos foi dizimada. Depois do Golpe, prendemos todos da oposição, até os simpatizantes. Não há notícias de rebeldes pelo país. Gozamos a doçura da paz.

Como me acharam se nem meus aliados me conhecem? Sempre me mantive anônimo. De vez em quando, um ou outro brincava comigo me chamando de Sombra. Eu gostava. Achava que me cabia bem. Afinal, não abria nem a boca, quanto mais a caixa de conversa. Sigilo era o segredo de meu negócio. O anonimato, a certeza de continuar vivo. Nas negociações, a conversa era sempre cara a cara, marcada pessoalmente, sem telefonemas, sem redes sociais. Uma sombra disposta a ajudar políticos a conquistar o poder, mantê-lo e destruir tudo que a ele se opõe. Assim foi no último golpe que arquitetei. Chegamos à presidência, transformamos o país num lugar seguro, digno de se viver, e esmagamos as forças rebeldes.

Não me arrependo de nada. Quando entrei nessa vida, sabia o que queria. Era adolescente. No ginásio, o professor de matemática me perseguiu. Deu-me zero por copiar o número errado na prova − era míope e não sabia, confundi seis com oito. O cálculo estava certo, o resultado, não. Argumentei. Aquele erro me faria repetir o ano. Nem ouviu. Não tinha consideração. Meu sangue subiu. A cabeça esquentou. Não. Não só prejudicá-lo, queria destruí-lo. A ideia ganhou forma.

Comecei a segui-lo. Acompanhava-lhe cada passo. A oportunidade surgiu numa noite, quando entrou num bar. Conhecia-lhe a rotina e bar era algo que não fazia parte. Sentou numa mesa no fundo do salão, perto do banheiro. Estranho. O que estaria fazendo ali se não bebe? O bar estava quase vazio. Fiquei do lado de fora à espreita. Uns cinco minutos depois, chegaram dois rapazes. Atento, acompanhei-lhes os movimentos. Sentaram-se à mesa do professor. O mais velho aproximou-se de seu ouvido. Parecia sussurrar. Volta e meia olhava pros lados, preocupado. O professor não era surdo! Ali tinha coisa.

Entrei, pedi um café. Perguntei se poderia usar o banheiro. O rapaz deu-me a chave e apontou para o corredor. Perfeito. O professor estava sentado de costas para a entrada do banheiro, de modo que não me veria e eu, encostado na parede, conseguiria ouvi-los com clareza. Quanto aos outros dois, pouco me importava. Não me conheciam. Com um pouquinho de sorte…

Entrei no corredor, parei, ouvido colado à parede e, pimba, lá estava a informação de que precisava. Um dos rapazes passou a data e o local onde aconteceria uma reunião. Exultei. Eram subversivos! Sem perda de tempo, entrei no banheiro e anotei tudo num pedaço de papel.

Do orelhão liguei para a polícia e dei o serviço. Na semana seguinte, sem maiores explicações, o professor foi substituído. Ninguém sabia de nada.

Diante de meu primeiro sucesso, fiquei entusiasmado. Resolvi oferecer os meus préstimos à polícia. Com meus 16 anos, boa aparência, jovem de classe média e bom de papo não seria difícil infiltrar-me nos grupos subversivos que cresciam a olhos vistos naquele momento.

Procurei um delegado, conhecido de meus pais, e chefe na caça aos subversivos. Deu-me todas as instruções. Aconselhou-me a ler os livros comunistas e me fingir simpatizante. Facilitaria minha entrada no mundo da subversão. Dentre as muitas dicas, para mim, a mais importante, foi a sugestão do anonimato, aceito e seguido à risca.

Sempre escapei como uma enguia diante de situações difíceis. Nunca conseguiram me identificar, mesmo naqueles casos, e foram muitos, em que houve acusações e a merda toda foi parar na grande imprensa. Nenhuma das pistas levava à minha pessoa. Como se prende uma sombra?

Em princípio, não me interessava a ideologia ou a posição política de meu cliente. Com a redemocratização, passei a odiar a democracia e mais ainda os comunistas. Meu trabalho foi dificultado e demorei um bom tempo para me adaptar a esse sistema infernal que levou nosso país à bancarrota. Na época dos militares tudo era mais fácil. Cheguei a infiltrar-me em muitas células comunistas, em algumas delas cheguei até a ser chefe. E como mandei gente pra cadeia!

Quando eram torturados e me denunciavam, não tinham muito a oferecer. Descreviam-me, davam detalhes da minha aparência, do meu jeito de falar, de dar ordens, mas não sabiam meu nome, nem nada. Eventualmente, quando meu retrato falado chegava às mãos dos investigadores, o delegado, esse meu amigo, mandava me deixar em paz. Afinal, eu prestava um enorme serviço à causa revolucionária.

Terminada a ditadura, minha carteira de clientes mudou de natureza e só cresceu graças a esse delegado que exaltava minhas qualidades de estrategista e atraía políticos insatisfeitos. Estes se deixavam fascinar pelas minhas peripécias e eu, sabe tudo, me orgulhava.

Nos primeiros anos da redemocratização, as forças políticas não estavam nada favoráveis, exigindo cautela constante. Assessorei, da melhor forma possível, todos os que me procuraram. Aliás, esse pessoal, mesmo tendo valores iguais aos meus – defensor da família, das tradições e dos bons costumes – é muito inábil. Têm a faca e o queijo na mão, só não sabe cortar, tem que ser ensinado. E sou um excelente professor.

Foram anos de trabalho. Processo longo. Primeiro, os liberais no poder. Depois, os comunistas. Aos poucos, e com paciência, ensinei meus alunos, políticos obcecados, diferentes técnicas e estratégias para desestabilizar os donos do poder.

Um deles chamou-me a atenção. Conheci-o numa reunião de militares e logo percebi seu potencial. Ofereci-me para assessorá-lo. Ele topou. Era um político medíocre. Falava bem, tocava nos pontos importantes da vida da nação, mas parecia um paspalho. Falava as coisas certas, na hora errada.

Um dia chamei-o e, a portas fechadas, dei-lhe algumas lições. Primeira, esconder seu verdadeiro objetivo, derrubar a democracia. Era o candidato perfeito naquele momento eleitoral. A maioria da população queria moralizar o país, acabar com a corrupção – sistema que ajudei a consolidar, depois denunciei – e seu discurso encaixava-se perfeitamente. Se fizesse as coisas direitinho, como o ensinava, ele teria chance de se eleger. Uma vez eleito, com o apoio dos militares e de parte da sociedade, fecharia o Congresso e seria dono absoluto do poder.

Depois de bem aprendido o bê-á-bá, lançou sua candidatura. Tinha grandes chances de vencer, mas algumas declarações infelizes fizeram-no perder eleitores. Comunistas e liberais aproveitaram-se e pioraram a situação com mentiras absurdas sobre o candidato. Esse quadro tinha que mudar.

Aí, armei uma jogada. Nada nova, verdade, mas altamente funcional e tinha certeza que daria certo. Bastava um falso atentado à sua vida. Mexeria com a emoção do povo, sempre sensível a tragédias, e o cenário mudaria. Não deu outra.

Contratei um assassino profissional e mantive-o no anonimato. Um pouco mais trabalhoso foi armar o circo. Eram muitos elementos a produzir. Os policiais para acompanhar o candidato não seria problema. Conhecia muitos deles que topariam sem fazer perguntas. Um pouco mais complicado seria conseguir médicos, enfermeiros e hospital. Mesmo esses, por uma boa quantia, topariam. Quanto à imprensa, esta não seria problema. Nossos jornalistas cairiam na rede feito peixinhos famintos, estavam predispostos a isso, era só prestar atenção na campanha, cada vez mais descarada, contra o pessoal de esquerda, devo admitir.

O atentado provocou uma comoção nacional e a vitória veio no primeiro turno.

Um dia depois da posse, reuni-me com o novo presidente. Ele estava eufórico e, ao mesmo tempo, um pouco amedrontado. Continuava abestalhado, sem ter noção das condições favoráveis para fechar o Congresso, prender os políticos da oposição e um ou outro magistrado que incomodasse. Diante de seus argumentos frágeis e medrosos, mostrei-lhe que aquela era a hora. Estávamos com tudo. De um lado, o povão alegre, feliz, com seu novo presidente, do outro, os principais generais das forças armadas. O que teríamos a temer?

Ele se convenceu e o resultado foi uma maravilha. Não se precisou dar um tiro. A maioria dos políticos foi presa, o Congresso fechado e aí começou a festa. Amedrontamos todo mundo que era contra a gente. Os mais radicais, prendemos.  Reformamos a educação, proibimos visões distorcidas da realidade e adotamos medidas militares de disciplina. Centros culturais, focos de gente de esquerda, fechados. Queimamos milhões de livros e instituímos uma visão honesta e não ideológica de nossa história – para isso alguns museus tiveram que ser queimados.

Quando o presidente me perguntava o que fazer com os presos, respondia-lhe que as prisões estavam superlotadas, sem espaço. Além do mais, criariam problemas. Os presos comuns seriam contaminados.

Um ano depois, o país estava tranquilo. A economia encontrava certas dificuldades. O capital estrangeiro se distanciara um pouco, mas, em breve, voltaria. Afinal, com as medidas que adotamos, em que lugar do mundo as grandes empresas pagariam salários tão baixos? Nem na China.

Depois de tantos anos, estava cansado de ser um anônimo, um desconhecido. Um Zé Ninguém. Comecei a sonhar. A ver minha imagem na mídia. Dar entrevistas. Para começar, um cargo importante. Com os contatos que tenho, não seria difícil, pensei, mas, pensei errado. Amigos e aliados fecharam as portas. O presidente não me recebia. A vida complicou. A conta bancária minguou. O dinheiro no exterior sumiu e o gerente do banco, na maior cara de pau, se justificou: “deve ser problema do sistema”.

Como recursos não me faltavam, achei que conseguiria fácil meu intento. Mas, não. Espere um pouco! Talvez seja alguém com medo de ser chantageado, coisa que nunca fiz, mas poderia fazê-lo. Apesar de manter-me anônimo, sempre me acautelei, arquivando tudo, como medida de segurança. Tenho fitas e fitas gravadas com conversas e negociatas, relatórios com nomes de cúmplices, parceiros, sócios, grana envolvida, quem pagou, quem recebeu, tudo, absolutamente tudo registrado. Se descobrir quem me encarcerou aqui, e não me matarem antes, acabo com a carreira dele, seja político, militar, ministro. Poderia até mandar bala, mas não tenho coragem. Não mato nem barata! Nunca fiz mal a ninguém.



Cesar Augusto de Carvalho: sociólogo, historiador, escritor e poeta. Lançou recentemente, Histórias de Quem (Desconcertos, 2020) e publicou Viagem ao mundo alternativo (Unesp, 2008) narrativa de uma viagem de moto pelo Brasil visitando as comunidades alternativas e Toca Raul (Independente, 2014) com contos, crônicas e uma radionovela sobre o universo de Raul Seixas. Seus livros de poesia incluem Proesia (Independente, 2013); Lavras ao vento, pá (Benfazeja, 2017). e Curto-circuito (Patuá, 2019). 

Contatos: cacarvalho49@gmail.com

Link para Histórias de quem : 

https://desconcertoseditora.com.br/produto/historias-de-quem/



 

 

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