
Eram 4 horas de mais um dia.
Os dias parecem todos iguais depois da reforma. Desaparece a importância de saber-se em que feira se está ou se já chegou o fim-de-semana. A importância da hora mantém-se. Há que saber quando almoçar, jantar e deitar, mesmo num mundo que roda cada vez mais depressa e do qual cada vez mais se percebe menos.
As crianças brincavam no jardim – como eu uma vez brincara com outras crianças. O portão do jardim abriu-se à ordem de um forte vento que soprava como nenhum outro. As folhas secas, vítimas do Outono, levitaram como que comandadas pelo vento, como arautos anunciando um senhor.
O meu fiel cão, que protegia os meus netos sob o disfarce de brincadeira incessante, interrompeu a sua frenética correria à volta dos petizes e ladrou ferozmente em direcção ao vento.
Lentamente, senti o vento chegar até mim e soprar na minha cara.
O meu cão olhou para mim em silêncio.
Tudo se paga… mas quem me dera ter um minuto.
Um minuto para dizer-lhes que o que importa é o agora, que não se devem inibir de amar e confessar que amam. Ou chorar. Ou rir. Sentir imensa e intensamente tudo. Que devem viver a sério. Quem me dera falar com a minha filha. Uma conversa verdadeira e não mais um «Olá, pai. Não te esqueças da sopa para os miúdos. Viste o gato? Até logo, pai.», como se eu fosse um secretário. Ela nem tem gato há já dois anos. Para alguém que me despreza tanto, ela é tão como eu.
Nem um minuto?
Para que soubessem quem fui.
Fui trabalhador. Fui obediente. Juro! Demasiado até. Fiz o que me disseram. Fiz o que mandaram…
Quem me dera dizer aos meus netos que não o façam. Espero que nunca tenham de ser obedientes. Desobedeçam se for preciso! É isso! Não obedecer! Que nunca tenham de arrastar o corpo pelo chão enlameado ou tirar um amigo da cara. E das mãos. E do peito. Espalhado por todo o lado. Em menos de um minuto ele ficou em nada…mas levou horas a morrer. E as rajadas constantes, sem nunca sabermos de onde vinham. E os gritos. Ainda os ouço. Crianças, mulheres, velhos… todos a arder. Fiz o que mandaram.
Mas eles são ainda muito novos. O mais velho ainda só tem 3 anos.
Um minuto para dizer-lhes que se amarem, não bebam! Por piores que sejam os vossos demónios… o que eu dava para não ter bebido naquela noite. Eu amava a vossa avó. Amava como ninguém… não fui eu, foi a bebida! Maldita noite! Eu pedi-lhe para calar-se. Eu pedi. O barulho…era como no mato. Por um minuto, ela pareceu-me um deles… foi só uma bofetada… foi o que me ensinaram a fazer!
Sim, foi isso… só isso. A culpa não foi minha.
Um pássaro negro poisou no meu alpendre, fitando-me. Julgando-me. Julga o que quiseres, eu julguei-me a minha vida toda desde aquela noite.
O vento pega-me na mão.
As folhas parecem formar um par de olhos… uma cara há muito desaparecida entre outras folhas.
O cão uiva.
O pássaro crocita.
A terra fica. O corpo vai para a terra, o que nós verdadeiramente somos – a nossa consciência – é a única a desaparecer realmente. Triste ironia que leva homens a criar deuses.
De todos os demónios e monstros que povoam a imaginação das gentes, nenhum é mais temível do que o tão real tempo, nenhum é mais horrível do que nós.

Lewis Medeiros Custódio nasceu na paradisíaca ilha de São Miguel, nos Açores, foi aluno do Conservatório de Ponta Delgada, onde aprendeu piano. É licenciado em Línguas Modernas e mestre em Ensino pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, além de ser judoca e guitarrista. Desde cedo, desenvolveu uma paixão pelo terror e pelo macabro, mergulhando nas obras de Edgar Allan Poe, H. P. Lovecraft e Stephen King.