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Nina Gualdi com Juscelino Kubitschek no lançamento de um livro dela, em 1963. |
“Por que a ânsia de
descobrir novos mundos?
Desiste de penetrar o
Universo! Faz uma
viagem à
criatura humana! (Nina Gualdi)
I
Nina irrompeu nos Campos Neutrais
Outrora território sem lei ou dono
Nos livros de História do Brasil Colônia
À beira do Chuí, o arroio que faz divisa
E corta, atravessa, um par de nações
Ao lado o farol que incendeia e ilumina
O fim e o recomeço de um mundo
Do Hermenegildo a Boa Viagem, do sul
Ao Recife, em itinerário pelo mapa
O corpo e a alma são travessias
Mesmo uma árvore fincada ao chão
Respira doutros ares que traz o vento.
II
Mestre-escola de crianças excepcionais
Letrada, articulista de jornais
Ensinando a ver com livres olhos
Autistas autores revoluções.
Mulher do lar, incompreendida
Desde sempre por suas leituras
Feituras de palavras em periódicos
Nina que nunca foi deste mundo
Sequer da Porto Alegre que tanto amava
Porto Alegre que acolhe e repele
Seus súditos adoradores vassalos
E os seus amores mais fiéis
Nina embala os seus bebês
Não há melhor papel que o de ser mãe
E se reconhecer nos olhos da prole
Olhos livres coração inquieto
E açoitado pelos que a rodeiam
Pouco bastando prosseguir presente
Para Nina não havia lugar
Fecha-se o cerco domiciliar.
III
Certo dia um realizador de cinema
Cujo olhar como câmera Arriflex
Viu em Nina num jardim na Rua da Praia
A presença duma estrela das telas
A marcante beleza dos trinta anos
Balzaquiana, escritora, poeta
Nina em 24 quadros por segundo
Convidada para um western rural
O eterno embate do bem contra o mal
A planície do pampa em celuloide
O centro do país descobriu Nina
Não uma miss, porém uma atriz
Engolida pela televisão
Virou vedete em teatro de revista
Cruzeiro, Manchete, Cinelândia
Parceira de palco de Aurora Miranda
Entre risadas na Praça da Alegria
E crônica de Stanislaw Ponte Preta.
Deu forma ao próprio livro o poema da carne
A carne do poema cadernos de fogo
Elogiada por ex-presidente e em lista dos mais vendidos
E de corar o rosto de outros vates.
Nina, porém, não pode representar seu melhor papel
Porque não há papel melhor que o de mãe.
Saudade imensa da Praça da Alfândega

IV
Há sempre o inevitável retorno
O regresso inevitável ao sul
A ela que não era permitido
Aos próprios filhos visitar e ver.
Sempre com um revólver em sua bolsa
Desde os tempos do Rio quando saía à noite
Dos estúdios de gravação da TV
Transmitida ao vivo e em tempo real.
A incerteza dilacerando o ar
Como um fantasma que há de voltar
Os cartões, chocolates e presentes
Cujas entregas eram pendentes
Uma briga na Junta Comercial
Não somente uma discussão de casal
Escutam-se dois tiros, retumbantes
Nada poderia retornar como antes
O marido resiste no hospital
Os enfermeiros testemunhariam
Sob juramento no tribunal
Suas derradeiras e desesperadas
Palavras: “Ela não teve culpa
E tampouco fez ou atirou por mal!”
V
Seu julgamento o mais demorado
Um júri inteirado apenas de homens
Banqueteada viva em praça pública
Defenestrada por versos impudicos
Invocam os jornais de fora do estado
Nina julgada não pela morte
Que ocasionou findando com sua sorte
Mas por todo um passado de atriz
Uma mulher que aspira ser feliz
Poeta, vedete e capa de revista
Procurada por crime à primeira vista
Disposta numa cela na ala Oito
Para trás os seus sonhos mais afoitos
A clausura numa explosão de calma
O remorso balada estranha da alma
O novo lar morada do ser
Nina e sua máquina de escrever
O seu destino escrito em linhas tortas
Amores por cartas paixões remotas
A cela repleta de quadros
Livros, desenhos por todo lado
Uma mesa e caneta-tinteiro
O adormecer sob a luz do candeeiro
E na memória, os filhos tão lindos
E no marido e nela os dois vencidos.
VI
Chegara o indulto em data marcada
Brotam os poemas de libertação
Marcas extremas e nascida em Leão
Os quarenta anos cobravam um preço
A carreira de atriz finalizada
A vida exigia-lhe um novo começo
Prosseguiu poeta na Livraria do Globo
Na cena cultural porto-alegrense
Canção do exílio diário do cárcere
Hippies na praça Dom Feliciano
Mencionava Quintana e Baudelaire
Provando o gosto das flores do mal
Ao não cumprir o seu melhor papel
Na impossibilidade de aproximação
Do par de filhos que deixou no mundo
Guardados no álbum de fotografias
O conta-gotas da solidão
A continuação da clausura
Seu apartamento cheio de pinturas
Cinquenta anos antes do tempo
De milhares de Ninas no novo milênio
Femininas, esbeltas, literatas
A colecionarem reações imediatas
Nos círculos das redes virtuais
Livres, magnificas e banais
Na multiplicação de outras Ninas
A ostentarem um avatar sem véu
Em percurso por vales e colinas
Numa viagem entre o intangível e o céu
Vlademir
Lazo é gaúcho da Praia do Hermenegildo, na fronteira com o Uruguai, e
ascendência mais ou menos próxima originada desse outro país. Gosta de escrever
ficção e poemas e é autor da biografia Cardeal — O Guerreiro do Futebol
(2020).
Uma resposta
Belo poema narrativo!