UMA CORRUÍRA NA VARANDA: Braz Chediak

Imagem: Eduardo Oliveira
Ontem, ao entardecer de um dia exaustivo, sentei-me na varanda e estava ouvindo CASTA DIVA, interpretada por Maria Callas, quando uma pequena corruíra, nascida ano passado nos fundos de minha casa, e que agora mora num vão do telhado, assentou-se num galho da trepadeira e, estufando o peitinho de penas marrons, soltou seu canto, ainda desafinado pela pouca idade.

A princípio não dei importância, era apenas mais um pássaro que cantava numa tarde de verão. Mas a jovem corruíra, se sentindo ofendida pela minha indifereça, assumiu um aspecto zangado, empinou seu corpinho, como se se preparasse para uma luta do MMA, e cantou mais alto.

Sei que os pássaros têm rituais, principalmente nesta época de acasalamento, e que estes rituais têm significados, mas confesso que não sou estudioso do assunto e, por isto, me concentrei na música, procurando me descansar do dia puxado, me desligar dos problemas naturais da vida que se acentuam com a velhice. Mas o passarinho não me deixou concentrar. Pulou de um lado para outro, me olhou com um um olhar altivo, eriçou as penas e, num esforço supremo, cantou numa altura em que eu nunca havia ouvido uma corruíra cantar.

De repente notei que havia um desafio entre seu canto e a melodia da ária que La Callas interpretava e compreendi que a avezinha estava chateada, enciumada porque outra voz invadia seu território, seus domínios.

Esta compreensão me fez rir, afinal sua raiva era tão delicada que chegava a ser engraçada. Mas ela, talvez achando que meu riso fosse de deboche, me olhou com desprezo e, caminhando sobre o peitoril com suas perninhas tortas, parou bem em frente ao aparelho de som cantou novamente, tão alto e tão dobrado que parecia que ia explodir.

Confesso que fiquei comovido com aquele ser pequenino que, com orgulho e paixão, desafiava  a grande cantora, para um duelo musical. Um duelo que, tenho certeza, nunca, em nenhum lugar do mundo, fora visto ou ouvido por alguém, e do qual eu era testemunha. Por isto, por perceber a angústia daquele delicado passarinho, por perceber que era seu coração que gritava, desliguei o aparelho de som.

De início a avezinha me encarou desconfiada, como se eu fosse um deus com poderes de fazer cessar uma música tão bonita. Depois tornou a cantar seu próprio canto, e como se só então descobrisse sua voz, ergueu a cabeça, suspendeu o bico com ar de vitória, e caminhou orgulhosa para seu ninho num buraco perto do telhado.
Fiquei ali, sozinho, em silêncio, pensando em todos os seres que querem se expressar e não encontram sua própria voz. Imediatamente me veio à cabeça um trecho de Henry Miller em que ele fala de sua luta no início de carreira, quando passava fome pelas ruas de Paris:

 “Imitei todos os estilos na esperança de descobrir a chave do segredo torturante da arte de escrever. Finalmente cheguei a um beco sem saída, a um desespero que poucos homens conheceram, porque não havia divórcio entre o Eu escritor e o Eu homem. E eu fracassei. Percebi que não era nada – menos que nada. Foi então que realmente comecei a escrever. Lançando tudo ao mar, mesmo aqueles que amava. No momento em que ouvi minha própria voz fiquei encantado: o fato de ser uma voz isolada, distinta, única, me deu alento. Não me importava se o que escrevia pudesse ser considerado ruim. Bom e ruim saíram do meu vocabulário…. Encontrava uma voz, estava de novo inteiro…”

Foi, de certo modo, o que acontecera com a corruíra. Ela também tentara imitar Maria Callas. E também, por um instante, se sentiu fracassada diante daquela voz maravilhosa que não era a dela. Mas quando desliguei o som ela pode ouvir a sua própria e tornou-se novamente a corruíra de minha varanda. Senhora de seu lugar e seu destino.

Agora, tenho certeza, ela está em seu ninho, junto à sua companheira, e ambas se entendem.

Dizem os pesquisadores que os pássaros, mesmo antes do nascimento, quando ainda estão em formação dentro do ovo, já aprendem a reconhecer os piados, os chamados das mães e os guardam para sempre em sua memória. E isto é uma coisa bela. É, mais ou menos, como nós, seres humanos que, quando reconhecemos o Chamado Cósmico percebemos a ligação entre as vozes dos homens, das aves, dos animais, das plantas, das águas… E temos a certeza que tudo é único, imenso, e que somos parte deste maravilhoso enigma que se chama Vida.


Braz Chediak  nasceu em Três Corações, MG.


Como cineasta dirigiu, entre outros, os filmes:
1. NAVALHA NA CARNE (1ª versão – com Glauce Rocha, Jece Valadão e Emiliano Queiroz)
2.DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA (1ª versão) com Nelson Xavier e Emiliano Queiroz)
3. BONITINHA, MAR ORDINÁRIA, com Vera Fischer, Lucélia Santos, José Wilker, etc., etc.
4.PERDOA-ME POR ME TRAÍRES, com Vera Fischer, Nuno Leal Maia, Lídia Brondi – Música de Chico Buarque, interpretada por Gal Costa.
Dirigiu diversas peças teatrais.
Livros publicados: CORTINA DE SANGUE, romance policial(esgotado),
UMA CORRUÍRA NA VARANDA, crônicas (pode ser adquirido pelo site da Editora PenaLux), 1001 CRÔNICAS (digital – Amazon). 
Escreveu diversos roteiros para o cinema, entre os quais: MINEIRINHO VIVO OU MORTO, A LEI DO CÃO, JUVENTUDE E TERNURA, etc., etc.

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