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Ilustração: Liv Bostald |
O erro de Venâncio foi não perceber que ser fisgado por aquele olhar de abismos seria toda a sua perdição. Pois era isso o olhar de Paula: um precipício tão alto, que lá de cima não se ouve no solo o impacto do corpo que nele se lança. Não passava disso o olhar de Paula (como se não fosse pouco): um despenhadeiro onde se lançavam os homens que com ela se aventuravam, uma queda sem escapatória rumo ao desespero e à loucura. Venâncio deveria ter percebido que aquele olhar, àquela hora do dia na estrada que cortava o nada do cerrado e a imensidão da Chapada, só poderia ser provocação do tinhoso. E se percebesse, homem temente que era, teria desviado os olhos pro chão como fazem de costume e sempre deveriam fazer as gentes do interior como ele. Mas pelo encanto que nele despertava, Venâncio encarava esse povo de Brasília como se não fossem de carne e osso, e como se outro deus, maior e mais poderoso que o das suas preces, os houvesse colocado na terra. E por isso foi sendo arrastado, engolido pelos olhos castanhos da perdição (a maldição tem olhos castanhos, até hoje falam por lá, virou quase lenda no povoado), feito um incauto que vai caindo numa vigarice, um gordo e manso boi estrangulado pela sucuri.
Venâncio olhou para trás e enxergou o que ainda era apenas um ponto vermelho lá no fim da estrada, uma nuvem de poeira subindo atrás do carro. Em pouco já ouvia o barulho dos pneus altos e grossos espalhando terra e pedras de ponta. E mais um pouco a camionete encarnada passou por ele e freou logo adiante. Venâncio cerrou os olhos esperando que baixasse a cortina de poeira, e antes que isso acontecesse já ouvia claramente a música doida que vinha de dentro do carro. De lá pularam duas garotas vestindo apenas biquíni e calçando aqueles tênis de televisão. Riam agitadas, com uma alegria nervosa, como se fosse ebulição em seus ouvidos aquela música estranha que fazia som de marreta batendo sem controle em chapa de metal.
– Onde é que fica o Salto do Rayzama? – uma delas perguntou sem nem dar bom dia, sem pedir licença para falar e interromper o caminho dos outros. Ficou esperando resposta com um riso destrambelhado, os dentes mordendo uns os outros numa aflição de quem estivesse sentindo qualquer troço por dentro.
Venâncio respondeu que faltavam ainda uns 15 quilômetros, mas falou sem conseguir tirar os olhos da outra, a alourada, que tinha um ar viciado de pensamentos maus e de quem se conduzia na vida de forma imunda, mas que era a dona mais linda que Venâncio jamais vira naquele fim de mundo de onde nunca tirou os pés em 30 anos tocando um gado aqui e ali e garimpando uma e outra pedra semi-preciosa para vender na beira da BR. Só que não era a beleza tranqüila dos anjos e das santas dos calendários da farmácia, nem era a beleza em paz do rosto de Maria posta no pequeno oratório da casa da mãe. Era a beleza que o mau também sabe ter para iludir e desencaminhar, a beleza das criaturas libertinas da noite que vagavam há séculos pelo cerrado fazendo medo no povo honesto e de bem do vilarejo.
– Sobe aí e leva a gente lá. – e sem saber se Paula mandava ou pedia, Venâncio subiu na camionete achando que a voz dela tinha uma coisa esquisita que o assustava, como se fosse alguém falando do fundo de uma caverna alagada onde a luz do sol não chega.
Um sujeito estranho tamborilava ao volante a música doida que escutavam. Apenas balançou o rosto quando olhou para Venâncio, que não conseguia ver seus olhos, escondidos por uns óculos escuros que de tão grandes tomavam-lhe quase que o rosto inteiro. Tinha o cabelo raspado e uns músculos inchados de ginástica. Tatuagens de bichos ferozes ocupavam-lhe o perímetro do peito e dos braços largos. O cara engatou uma primeira e saiu acelerando forte, assim que Venâncio bateu a porta do carona.
Durante todo o caminho foi aquela música infernizando o juízo, e as garotas rindo alto e falando de uns assuntos que Venâncio não tinha a menor idéia do que fossem. O sujeito de vez em quando dava duas ou três palavras, que por causa da música Venâncio não conseguia entender, mas as duas se acabavam de rir como se ouvissem piadas, fazendo estardalhaço feito pássaros que fogem da chuva no fim do dia. Na cabine apertada para quatro, a coxa nua de Paula imprensava a de Venâncio e uma camada de suor brotava entre as duas. Mudo, ele olhava o retrovisor como se nem estivesse ali e sentiu que a mão de Paula tocou seu joelho e foi subindo. Teve a impressão de que ela virou o rosto pro lado contrário e deu um beijo na outra garota, mas ele permaneceu sem tirar os olhos da estrada que via se perder no espelho.
*
Pararam o carro em uma clareira que servia de estacionamento. Dali andariam uns trezentos metros por uma trilha de vegetação rasteira até que chegariam à cachoeira. Venâncio disse é por aqui, quase com medo de abrir a boca no meio daquela gente doida, as garotas dançando abraçadas a música que prosseguia perturbando o silêncio da natureza, o cara olhando em volta sem tirar aqueles óculos de mosca, como se aguardasse uma emboscada. Vocês peguem essa trilha aí, ó, e mais uns cinco minutos chegam no Rayzama, e agora Venâncio falou corajoso, como se com aquela firmeza toda dissesse missão cumprida e que agora precisava voltar. E já estava mesmo dando uns passos para trás antes de virar o corpo e seguir na direção oposta, quando aquele demônio de mulher se desgarrou da safadeza que intentava fazer com a amiga e veio atrás dele, já o alcançando pelo braço e deslizando a outra mão pelos seus quadris. Vem com a gente, rapaz, ela o puxava no sentido da trilha, e desse modo chamava-o a seus abismos. Ele resistia ainda, fazia de freio a sola do pé fincada no chão de terra. Estava a uns dez quilômetros de casa, teria que andar tudo aquilo de volta e já eram quase onze da manhã, a mãe no rancho poria em pouco o almoço e depois ele prometera terminar um serviço num sítio lá perto. Mas a endiabrada da loura acariciava-lhe as costas e a outra mão dela vinha deslizando do seu ombro pelo seu braço inteiro até fechar com firmeza em seu pulso e começar a conduzi-lo em direção à picada que se perdia mato adentro. A outra doida da amiga cantava a música louca, pendurada no pescoço do outro com as pernas enganchadas na cintura dele e tentando fazer girar o sujeito que não parava de olhar desconfiado todos os cantos que conseguia enxergar por trás da lente preta.
Venâncio quando deu por si já nem fincava mais os pés no chão, já não oferecia resistência e se deixava conduzir apressado, começando a se deliciar com aquele biquíni azul claro que não escondia quase nada de Paula. Quando se deu conta já passara da metade da trilha e chegara à beira do poço largo e profundo que se formava com a queda d’água e onde Paula parou, esticou os braços para o alto e com a ponta de cada pé tirou os tênis, e em seguida fez o gesto que só abandonaria a lembrança daquele pobre diabo daquele miserável fim de mundo quando a morte viesse roubar dele a claridade dos dias: uniu o dedo indicador e o polegar em forma de pinça e com eles assim desatou o laço do biquíni cor do céu e a peça se desprendeu qual folha seca que cai em tarde sem vento. Antes mesmo que entrassem pelas vistas daquele capiau bestificado os contornos da bunda despida de Paula, ela, mais rápida que um bote de bicho arisco, cruzava as mãos por trás das costas e fazia o mesmo com a parte de cima da vestimenta. Virou-se para Venâncio, os seios duros flutuando entre sombras e luz do fim da manhã, disse vem e se tacou na água escura e fria que ali se amansava após cair com força do despenhadeiro. E enquanto Venâncio tentava entender os movimentos de peixe exótico com que Paula dava voltas pela água, a outra doida passou por ele correndo para o mergulho, e nua do mesmo jeito desapareceu por segundos na escuridão profunda do lago. Voltou à tona gritando daquele jeito estranho de quem misturava euforia e desespero. Na beirada, o cara também estava nu, e sem ter tirado os óculos fumava um cigarro de maconha, cujo cheiro Venâncio só sentia quando chegava gente de Brasília.
*
Venâncio não mergulhou, muito menos tirou a roupa. Ficou ali mesmo, na beira, abraçado aos joelhos, de um lado olhando constrangido aquela gente bonita de comportamento estranho; de outro, enfeitiçado, espiando Paula vencer a correnteza com sua nudez distorcida embaixo d’água. Ele disfarçava, desviava os olhos na direção de uma árvore besta qualquer quando ela e a outra ficavam boiando na água trocando carícias, cochichos e risinhos e olhando também para ele.
Permaneceria daquele jeito pelo tempo que descesse aquela cascata do desfiladeiro não houvesse o tinhoso em forma de mulher linda se aproximado outra vez para chamá-lo, quase mandá-lo entrar na água. Paula agachou-se junto a ele, como se ficar nua perante um estranho fosse tão natural como sair molhada da cachoeira, e da mesma forma natural foi puxando pela mão aquele rapaz xucro que ia perdendo a timidez à medida que avançavam rumo à água, fixado às coxas firmes e viris de Paula indo à sua frente, sustentando a bunda redonda e dura. Então nem prestou bem a atenção em como acabou nu também, na beira da água, esquecendo que achava vexame a cueca ordinária e encardida, e que o inibia a própria pele com cicatrizes da roça e manchas de quem vive em lugar pobre. Rindo com escárnio, ela olhou despidos seus ombros e braços fortes, os músculos do peito, seu abdômen reto, disse imundícies com jeito de quem conhece mesmo todas as baixezas do mundo e atacou Venâncio com mãos loucas e deslizantes e com a língua espetada, saindo da boca feito uma serpente possuída. Durante o beijo ele sentiu tremores e rigidez, e mesmo que na hora não desse importância, sentiu também a angústia que nos avisa quando as coisas não vão acabar bem.
*
O sol já havia se posto, mas sobrava ainda a claridade do crepúsculo quando os três largaram Venâncio na beira da estrada, no acesso ao caminho para a cachoeira. Ele desceu sem jeito da camionete apertada, arriscou um até logo gente, mas não houve resposta da outra garota que mantinha a cabeça girando ao som da música doida nem do cara que aguardava a escuridão da noite com seus óculos pretos e enormes. Era como se Venâncio jamais houvesse existido para eles. Paula ainda agradeceu rápido, tchau, valeu, ela disse acenando sem muita vontade, com metade do braço para fora da janela. Apenas isso, e o que restou àquele homem tosco foram dez quilômetros de estrada de volta e a escuridão espessa que ganhava corpo rapidamente. Caminhava com pressa e quem o olhasse de perto o julgaria atordoado, com algum problema na mente. Era a lembrança das imagens daquela diaba loura subindo e descendo pelo seu corpo, a tarde inteira, fazendo imundícies que nem por dinheiro as prostitutas da BR que passava ao largo do povoado admitiam fazer. Cala a boca, peão, e a voz rouca saindo da boca do demônio era quase um chicote dando nas costas de um condenado porque fizera menção de falar, fazer um elogio aos bicos rosados dos seios, à rigidez saudável da bunda que jamais vira nas putas que aceitavam seus trocados. E ela gemia, trocava de pose, faz isso, faz aquilo, mandava e queria que fosse logo e falava alto. E a voz se repetia agora, na cabeça de Venâncio, vinda do fundo do céu que escurecia enquanto ele andava. Uma hora ela berrou cadê Fernando, cadê Simone, o cara e a garota estranhos, ele intentou dizer que lá queria saber deles e ela te aquieta peão, imitando com deboche o falar dos dali, e gargalhava como devem fazer os mensageiros de satã, cuja tarefa no mundo é capturar umas bestas quadradas feito Venâncio e levá-las ao fogo. Aqui peão, assim peão, e Paula jamais falou o nome de Venâncio porque nunca quis saber, Paula nunca lembrou do rosto de Venâncio porque quase não olhou para aqueles traços fortes castigados de sol, suor e cansaço da vida, apenas fechava os olhos se mexendo possuída e quando os abria era para girar a cabeça, fazendo o contorno pelo céu azul da tarde e berrar palavrões e imundícies e chamar Fernando, Simone, corram aqui, como se houvesse achado um pote de ouro, um bicho raro.
O que foi do roçado, do serviço de hoje que prometera fazer? A mãe queria saber quando ele foi dar em casa. Entrou pela porta da sala escura e paredes azuladas pela luz da televisão, passou por ela com os olhos opacos e na cabeça o demônio louro ainda dançando com a bunda e os peitos de fora. E a mãe falava também do almoço, da janta que guardou, do domingo amanhã tem missa, e ele teve um impulso como quem tem de vez em quando um troço, não comeu nem tomou banho, saiu de novo, ainda no corpo o cheiro das imundícies de Paula. Procurou no centro do povoado, nas pizzarias e restaurantes chiques onde nunca parara nem na porta, aonde só entravam os que vinham de fora. Foi só no fim da rua que chamavam de principal que viu a camionete parada, mas com os faróis já acessos e o motor ligado. Assim que tentou correr eles partiram com pressa, levantando poeira, a música doida ficando distante. Vão para uma festa de embalo numa fazenda por aí, disse alguém que ele conhecia, levaram bebida forte e cerveja gelada. Venâncio respirava a poeira levantada que ainda não descera toda.
Voltou para casa sem querer acertar o caminho, para ver se largava em algum lugar aquela angústia que esmagava por dentro o peito. No céu escuro chegou mesmo a ver a boca de Paula querendo engoli-lo, do mesmo jeito que as noites sem lua fazem com o cerrado.
*
Venâncio vagou dez, quinze dias a esmo pelo povoado, parando para olhar pro nada, sem pensar, virando para trás na estrada toda vez que ouvia barulho de pneu espalhando a terra batida. Aceitou um ou dois serviços, consertou uma cerca, fez um roçado, pouco demais para quem começava a trabalhar antes do sol e voltava da lida se orientando pelos vaga-lumes. Certas tardes sumia, ia para o Rayzama sentar na beirada do poço manso, como se as águas houvessem sido capazes de guardar a nudez de Paula. Passava os olhos pelas árvores tortas e nativas, maciças feito as rígidas e viris coxas que vira nuas. A cachoeira rebentava nas pedras e ele chegava a pensar que assim escarnecia dele e de tudo, feito a voz lúgubre de Paula. Em alguns dias que voltava de lá, parava na birosca e pedia uma cerveja, que nem bem chegava a terminar. Foi em uma dessas ocasiões que encostou no balcão, junto a ele, o primo Armando, que cresceu no povoado e foi para Brasília arrumar trabalho. Conseguiu emprego na segurança de um dos grandes tribunais da justiça, o que perante os olhos daquela gente dali o fazia conhecedor da vida e das verdades. Em uma dessas quebradas por onde entram as conversas fiadas, Armando acabou se referindo a uma certa patife loura, que é alta funcionária lá no tribunal e que outro dia andou por aqui muito doida de fumo, pó e bebida; ela, uma outra bem doida também e um sujeito que acordava e deitava chapado. Seu Tinoco da Aroeira disse até que enxergou de longe ela e um peão daqui, na maior indecência, três horas da tarde pra quem quisesse ver, lá no Rayzama. Eu mesmo, que arrumei um bico numa festa doida lá na Fazenda da Ponte Alta, vi a bandida sumir com um e aparecer de novo com outro, contou o primo, ar de censura.
Era como se um punhal de gelo houvesse atravessado o peito de Venâncio, mas ele manteve o que parecia dignidade. Feito pedra, ouvia Armando contar empolgado o que sabia das devassidões de Paula. Essa mulher anda com quase todo mundo lá do tribunal, e o primo elevava a voz, como se fosse preciso contar também para quatro ou cinco jagunços que bebiam na birosca. Contou de um juiz que fez de tudo para traçar a bandida, e como que por capricho ou desprezo ela não fosse com ele, o coroa meteu a mão no bolso e chegou pra ela com dois mil na mão, tudo em nota de cem: e agora, você vai ou não vai? Você acha que ela não aceitou? E isso eu sei porque quem me contou foi o motorista que trabalha com ele. Igual a essas desgraçadas que ficam na beira da BR, a diferença é que elas fazem por necessidade, a outra fez por safadeza, mesmo. Algum capiau perto murmurou é verdade. Venâncio baixou os olhos duros dos homens que não podem chorar. A cabeça doía pesada, rodava depressa sem encontrar um pensamento certo.
Quando a conversa mudara há muito de rumo e Armando já ia mesmo tomando a última antes de ir embora, Venâncio pegou no braço dele, um sorriso disfarçado no canto fingia picardia. Contou forçando uma risada para primo que o peão lá no Rayzama traçando a bandida era ele próprio, e o primo ergueu as sobrancelhas num espanto divertido e maledicente: era? E Venâncio carregou ainda mais na risada falsa, uma espécie de choro ao contrário, dizendo que sim com a cabeça e perguntando como é que eu encontro essa mulher? Não, lá onde você trabalha, não, devolveu de pronto a sugestão, queria que você me conseguisse o endereço dela. O outro encarou Venâncio, e ressabiado queria entender aquela pretensão. Mas não fez perguntas, apenas prometeu: semana que vem eu trago.
Já era noite na saída da birosca e Venâncio foi andando pela estrada do mesmo jeito dos últimos dias. Quando lembrou que chegou a imaginar Paula largando a cidade e vindo morar com ele no povoado, uma coruja piou no mato como se estivesse debochando dele.
*
O caminhão em que pegou carona cortava as vias retas e desimpedidas de Brasília, mas Venâncio não tinha nos olhos nem uma sombra que fosse da admiração dos que vêem pela primeira vez aqueles palácios e monumentos iluminados. Não sei o que eles fazem aí que a vida da gente só piora, apontou o motorista quando passaram pelo Congresso Nacional. Venâncio olhou a construção sem realmente saber o que se fazia ali dentro, mas não teve mesmo qualquer vontade de descobrir, pois nada que estivesse do lado de fora de sua cabeça tinha qualquer significado no momento.
É aqui, ó, e o motorista fez sinal com a mão espalmada enquanto encostava o caminhão. Bairro de bacana, vai procurar emprego de caseiro, é? Mas Venâncio apenas agradeceu, bateu a porta sem dar maior satisfação.
Conferiu o endereço, um emaranhado de letras e números com a caligrafia de Armando no papel encardido. Pisava decidido o chão de uma subida íngreme e impressionava-lhe o luxo exagerado de certas casas ornamentadas com umas insossas palmeiras que não davam sombra. Em um e outro terreno vazio, umas últimas árvores tortas pareciam aflitas, lembrando que tudo aquilo em algum tempo fora cerrado.
Estacou no cume da subida precisando decidir se pegava a direita ou a esquerda, mas uma batida de música doida vinha como que trazida pelo vento, indicando por onde ele deveria seguir. Um cheiro de churrasco ia ficando mais forte à medida que ele caminhava e o volume da música aumentava também. Olhou o papelzinho antes de descer uma rua com uns dez carrões mal-estacionados, alguns fechando garagens. De uma varanda um coroa de porte atlético berrava ensandecido que chamaria a polícia, mas ninguém ouvia porque a música destemperada que vinha da última casa estremecia até as estrelas.
Venâncio empurrou o portão que esqueceram aberto e foi ganhando o jardim escuro. Ali, um sujeito apenas de sunga desmaiara junto a uma pilastra. Foi pelos fundos até chegar a uma porta de vidro que dava acesso ao interior da casa. Empurrou e a porta não abriu, mas no mesmo instante um outro sujeito de dorso nu, olhos vermelhos e fala enrolada chegou em seu ouvido e gritou se ele era o caseiro que ia buscar cerveja. Venâncio respondeu sim com a cabeça e teve a porta aberta como se houvesse dito uma senha secreta. Rapidamente já estava na sala imensa, de móveis caros e chão encerado, onde um grupo de homens e mulheres sem a parte de cima do biquíni pulava e girava os pescoços ao som do bate-bate sem controle. Paula não estava entre eles. Um cheiro que misturava carne queimada, vômito e cerveja derramada deixava o ar pegajoso. Aproximou-se de uma garota pálida, encostada na parede, que não se mexia e mantinha os olhos retos em algum canto dali. Onde está Paula? Ele berrou no ouvido dela e quase recebeu no peito um jato de vômito amarelo e viscoso que foi acertar em cheio uma poltrona colorida ao lado.
Paula, onde está Paula, e entrava pela casa berrando nos ouvidos daquela gente dopada que sequer o enxergava pela frente. Um sujeito pelado passou correndo com uma garota nua nos ombros; um outro surgiu do mesmo jeito carregando um terceiro, e duas garotas nuas corriam atrás imitando os dois. Venâncio lembrou da mãe e dos emissários do demônio sobre os quais ela avisava desde que ele era pequeno. Paula, onde está Paula? E começou a abrir quartos e banheiros, flagrando repetições da merda de mundo no qual vivia aquela mulher que o enfeitiçara.
Ao abrir o último quarto, identificou o deboche de uma voz que gemia como se viesse de uma caverna alagada, e um facho de luz do abajur clareou aqueles olhos de abismos cínicos. Paula pareceu-lhe horrenda, desfigurada, um lagarto monstruoso que vira na TV quando era criança e que matava e comia seres humanos com violência e voracidade. Ah, peão, sai daqui, vai embora, quem te convidou? Para seu espanto e surpresa, ela o reconheceu apesar de doida e da visão prejudicada pelo sujeito e a garota que também estavam na cama, outros que não os daquele dia no Rayzama.
Venâncio tirou do casaco a pistola que até hoje pouco se sabe como conseguiu. Apertou o gatilho sem saber atirar, substituindo a técnica pela loucura. Algumas balas ricochetearam no chão e nas paredes, e outras acertaram Paula, o sujeito e a garota, calando a noite, encerrando a orgia. E como fosse apenas um desgraçado pobre e possuído que acabara com a vida de gente rica e influente, foi condenado a deixar a prisão apenas quando estivesse bem velho.
André Giusti nasceu no Rio em 1968 e mora em Brasília desde o fim dos anos 1990. A Maturidade Angustiada (Contos, Penalux) e Os Filmes em que Morremos de Amor (Poesia, Patuá)são seus livros mais recentes. Também é jornalista e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br