
ARTE POÉTICA
Minha palavra une-se ao claro tempo,
come das frutas proibidas,
vomita esta febre que circunda
as nações dos resplendores.
É uma manhã de velhos pássaros que entoa
nos verdores sua ferida.
Palavra minha, minha inimiga,
às vezes tua água, teu corcel sem traje, imagem
do delírio atômico,
úmidas raízes proliferam a busca que a coroa.
E depois da primeira paisagem,
depois dos versos se fecharem
no branco das medulas assombradas,
o silêncio que lhe molda ainda lhe empunha
como uma folha refletida num punhal.
***
UNIVERSO
Quantos atrasos da eternidade?
Vingamos nossos escândalos…
Nossos amores…
Imitamos o deleite e o medo da cidade
num gole de café
para deitar o seu negro segredo
e as âncoras da fé
nas estrelas desta carne.
***
AO IRMÃO QUE NÃO VEIO
Dia e noite
só o pensamento suspira,
e eu digo “É a voz”, mas só suspiro
parco, pronto a escrever estes e outros versos
atrasados, Prometeu.
Mas te conhecem os meus amigos
por lágrima e sorriso
meus, e te batizam por conhecido,
e sequer me conheceram.
E tu, quantas faces incontáveis tomas,
quantos nomes
neste vago mundo em que vago
dia e noite achando ouvir tua voz
em estouros de artifícios,
nas caldas faiscantes dos torpedos dos meninos
quando as fogueiras
quando a música
quando o céu
Só achando… mas
e lá foi! Foi lá. Olhos
que não abriram, os teus;
sangue sobre sangue, o teu;
e todos dançando,
dançavam, dançaram;
por latidos de cães
foste acompanhado
para dentro do mistério.
Já agora, ninguém a dar por falta;
o vento que passa é o vento; nada
seria diferente, ao que parece, a quem cala
sua saudade, a quem supera.
Já agora, o que é magia das coisas,
o que é encantamento
o que é caminhar alto,
à sombra das coisas, o que é impalpável,
o pó endurecido, cascalho
do teu silêncio; tu, nada ou espírito,
mil vezes vem de luz e toque,
a afagar este que vacila os passos.
O que serias? E este, toda a digressão…
Mas eu sou um homem, um bicho, baldo
de tempo a ti comparado,
quase um solstício, Josué com Gideão,
para carne e espírito guerrearem.
Pois loucura de verdade seria não senti-lo,
visto que nascer é tão cumprido a quem
de dia e à noite vem e nunca se despede.
“Mas atenta ao fato, sonhador:
morreu Aquiles, teu irmão,
guerreiro nato
morto aos cinco meses…
Não atenta mais em busca-lo
ou em comparar-te à possibilidade
do que não foi. Vê que és aquele;
dentre as almas, o que vingou;
enfim uno, não só — Em ti
ele prossegue.”
***
PARA ANDRÉ BRETON
Abre-se o mundo de janelas insolúveis
É preciso estar atrelado às ondas consagradas
e às consagrações do verbo violado
Orar de mãos de barro preso à imortalidade dos cantares
descendentes
Atender com clarins o brilho da mudez de jade
da qual falamos decadentes
Antecipar seus idílicos na flor do Caos que martelamos
absolvidos dos ensaios desta vida
E no leito bravio de ter nascido moribundo em mão terrestre
as asas gastas de placenta arfar nos ares
dos picos dos portais enfim humanos
Sonhar cada sonho e morrer com certezas
Cas de utopias indigestas
pulam os manuscritos em tua pança com os mapas
da infância guarnecidos
Ai das estrelas Filhas órfãs dos amores
Não te conhecem nem cavalos negros da noite estéril
os galopes de garras que dão suas mamas ao futuro
as desarticuladas procissões da ingênua ira
com que os muros de neblina bloqueiam a morte
E cada palavra na lava que vos banha
e cada sonho em um sonho segurado
em cartas que assinamos à tinta de olhos secos
para anjos traduzirem ante Deus e os demônios
Sob a pétala que de nossa turbulência desnudamos
uma única mão atravessa o rio
ó magnólia
lança-nos ao mar bravio por muitos anos
Sim
dos teus olhos hipotéticos e do seu hipotético corpo
calmamente adverbiando as configurações da natureza
Sim do teu corpo e da tua alma
do vivo perfume do teu toque acústico que os vapores d’alva
abreviam mansamente
Sim da tessitura do orvalho que lhe cobre
como os caminhos de um tigre na pele da aurora
da tua declamação de unhas feitas
e dos teus lábios de fracas velas
só o baque imaginado dos simbólicos palácios
a astronomia que os nervos apetecem se dilata
E da tua sombra guarnecida golpeada
pelo lustre dos meus pombos impossíveis
desde os teus cabelos de bronze engaioláveis
sim
um planeta antecedente dissolvido em meus rubores
reclama o nome do primeiro Paraíso
onde habitas antes da Verdade e das Ideias
Dos vórtices mesclam-se
as frutas arcaicas e o Éden apodrecido
Para nós eriçam-se o branco e o negro
os alfinetes naturalistas do inconsciente
como as barcas sobrevoam cada reino polifônico
da saudade
Rupturas no carmim do sangue aguado
e o amor outra vez inscreve as penas
do seu cão a latir a lançar dados
cuja sorte imediata é seu riso e sua presa
Prisioneiros da esperança em nordeste pantanoso
pródigos para terríveis museus esboçados
como lojas de canções incantáveis e produtos incolores
esta é a dignidade que esborraram das cabeças dos gigantes
Os seus governantes são buquês e mariposas
Pendem para o lado da dúvida
as moradas dos assombros perecíveis
os dormitórios das câmaras e timbres
com as zebras sufocadas entres os montes
E no transe da amargura as minhas tempestades
e cada pedra do jardim lhe envelhecem
Pobre e olvido de querubins
nas trincheiras do bairro azul com os pés quebrados
profanando a insurgência dos encontros
pares de suspiros bombas de pupilas regravadas do mármore
Diminutas velocidades enrolam-se ao passarmos
desfeitos de marquises e cádmios elementares
por fantasias desbotadas pelo tédio
que as chamas translucidam enquanto a pólvora congela
Dançam vegetações de pássaros e palhas aos luares
retratos umedecem a piedade
vemos as rosas ordinárias cobrirem
os mercenários que formaram a galeria
E os anéis de surpresa em meio ao pânico
É o teu perfume de seiva que rondou pelas navalhas
É a tranca de agulhas que prefigura em meus vitrais extraviados
São as pinturas olhando os acrobatas incapazes
de contemplar
a olaria
em que beijam-se os relâmpago
Não há nada sob a pele além da vila
a vida sentada no impossível
e os livros queimados na boca das crianças
Sonho com a chegada dos anjos
e um Deus dormindo que não sonha
Sonhas comigo a arte dos martírios
enquanto os vivos bebem da vida sob o sol
Mas tem calma
A pele arde
Tem mais calma ainda pela paz.
***
INSÔNIA
Vaga a noite, após o tempo dedicar-lhe
com tuas forças tuas peças,
dia a dia,
e o trabalho de gastá-las com engenho
e ditar vida, sorte e méritos,
dia a dia… Todas elas.
A dor nos olhos, a pesada cabeça,
em ter de amedrontar teus sonhos
com o amor dele ou dela…
Com que coragem solapar a bruma eterna
e catar no mesmo tempo
de um cochilo a dura sega
da alma hirta e do corpo mole?
Paciente recordar do amanhã
em tudo…
Decai-se a madrugada sobre a mesa…
Pálido céu físico do mundo —
só ele sozinho acontece.
***
NOVIDADE
O ouvido como uma faca,
não a língua;
uma flor que estava escrita
e venceu a invenção
da primavera.
É assim que eu ouço
e hasteio os meus escombros.
***
PREDESTINAÇÃO
Às vezes, mais banido dos tormentos
naturais, medito e imagino
que chegarei aos últimos anos
inteiro… Minhas pontes e povos
certamente cederão às trombetas do apocalipse,
e num fluxo invernal os meus sonhos
serão dispersos sobre a face do lago,
serão intocáveis, mistérios ondulados
pelo sopro de uma vida que não me pertence…
Hoje tudo me ensina,
da luz, da sombra, das folhas, das rochas,
tudo me ensina um amor,
quando não insisto que me ensine
a ira; e sim, também me ensina.
Mas, no átimo destas copas que se erguem,
e que na memória, ainda que morram, permanecem,
tudo me deixará, na quietude ou na agonia,
como estas livres folhas secas
cuja formas são meditadas… conhecidas…
e cujas vozes moribundas
ninguém jamais pôde escutar.
***
ILUMINAÇÕES
I
Todas as folhas com um tempo fugiram;
fenderam-se invernos, e sóis enganadores
cobriram-me de frio, como ao dormente
frente aos campos vazios
emergiram labores.
E quando em claros vacilos, veio a erva
de estrelas enfermas
como ao jovem paço no imo heroico,
pelo chão de Creta, onde a terra é a mesma
e o Mar é fóssil,
minhas raízes cantaram no mundo que gira
os ventos da morte, que levara e trouxe,
sonho e prodígio,
visto que era mais tímida
a Luz que cruzava
toda a terra às torres!
E chegará com um tempo a vossa amiga
a alcançar magoada,
entre os verdes escudos,
as asas de aço e o rosto que a intimida,
longe da minha velhice entre os galhos escuros.
II
Se direi eu que tudo é treva…
quanto à luz, este manto,
segunda filha do universo,
quando finda não se entrega,
como a vida dada aos anos,
mas sobre as coisas vai pousando
sem saber que é o inverso
do que a coisa em se leva
sem sentir o que a luz revela:
somente as trevas duram tanto.
E se imagino uma labareda
no olhar de um amor infante,
imagino a mesma lenha
que na velhice é longo instante…
Mas até a luz a luz abate,
se de dia a fogueira é parte
de uma matéria caducante —
achada como um novo encanto
tingindo a lenha com sua arte:
somente as trevas duram tanto.
Mas sábios, leigos e astutos,
no seco pranto dos defuntos,
à noite dura, longa e fria,
de tanto a luz lhes fatigar
pelos desertos desta vida,
observaram sem espanto,
como a terra que a girar
sabe que as trevas duram tanto:
“Sonhar resta a este mundo
sonhos maiores que os sonhos.”
***
RETRATO
Escorado no caule —
os olhos desnudos de fúria,
recaídas sem sorriso:
que sombrio nome a uma face
borrada pelo fundo!
Quer dizer o que não diz.
Meio engravatado-torto,
aspiração do acaso
ou só meu símbolo que pulou a janela
e se meteu num turbilhão de homens.
***
GEOGRAFIA
Este outro fragmento do frio
aberto ao céu —
este outro pavio que sonda as bocas —
esta outra metrópole levada ao bico
(som que parte o mundo,
o mundo repartido);
este anjo sem coração,
este vácuo que sustém a cor — esta
oração que pousa nas raízes —
filha d’água que pode magoar-nos
a espera;
estes ossos vitimados,
estes tão lerdos aprendizes
das almas cegas.
***

Respostas de 3
Tive a honra de ser aluno deste grande professor! E afirmo que ele é grande em tudo que faz, sua alma exala poesia e arte.
Wellington! É uma surpresa vê-lo por aqui.
Eu que sou feliz pela oportunidade de ter alunos como você, que são tão poucos, tão raros, pessoas de espírito sensível.
Obrigado pela apreciação! Um grande abraço.
Poética densa em imagens e referenciações. As problemáticas não comungam com um tom escatológico embora muito presente sejam os conflitos protagonizados. O site Amaité, procurando sempre receber bons autores, acertou novamente e desta vez com Daniel Cosme, poeta de aguda consciência das parafernalhas da vida (pós) moderna. (G. Monteiro)