e outro
há um líquido que parece
estar parado – como se
fosse possível a um líquido.
Entre uma margem
e outra
o elevador transita em silêncio,
com seu fundo falso
e pesado.
Há uma luz amarela
que parece iluminar e enferrujar
a música.
Entre uma vértebra
e outra
vai a dor amortecendo
o coração.
Há um tanto de cóccix
entre os olhos marejados
de velhice súbita.
Entre uma água
e outra
há o casco do navio
em movimento.
para Virginia
completamente de si mesmo e andou sobre as águas.
Seu corpo foi visto e revisto
em uma grande quantidade
de papéis, e não se sabe
mais sobre o assunto,
se ele chegou aonde queria chegar
ou se não se despiu e tampouco
andou sobre as águas.
Um dia ela se vestiu
completamente, encheu os bolsos de pedra
e andou sob as águas.
A pedra que leva seu nome,
até hoje, sustenta-se firmemente
sobre a terra.
CorrentezaMeu pai não me falou da correnteza
e nem das tantas pedras que há no fundo.
Se nada me foi dito com clareza
o mar tampouco foi menos profundo.
Existe no silêncio a natureza
das coisas que nós vemos num segundo.
E aquelas que não vemos, com certeza,
não gritam para nós, mas para o mundo.
Meus pés foram sentindo, lentamente,
a areia movediça do acidente,
e a fala me saía pelos braços.
Mas eis que me aparece, de repente,
o mar, a correnteza, novamente,
e eu volto à praia por meus próprios passos.
É uma questão de tempo, a morte. E a vida
corre por dentro do soneto. Tenta
fazer com que essa rápida descida
tenha alguma beleza (breve e lenta).
pelo vestido rubro que a sustenta,
e siga por aqui, enlanguescida,
fingindo que não pensa nos oitenta
anos que a levará à morte súbita,
o espelho vai travando uma outra luta,
espúria luta contra uma velhice
anunciada no primeiro verso,
já no tempo inteiramente submerso,
verso que nada diz, dirá ou disse.
Carrego dentro de mim
um monstro de carne e osso,
que fala, baixinho, assim:
“estou crescendo, seu moço”.Não sei por onde é que eu ouço
essas palavras sem fim,
vibrando ao fundo do poço,
de onde acredito que vim:
gritando à hora do parto,
me vendo, à luz do meu quarto,
pensando a vida lá fora.
Mas em verdade que vida,
se o que me espera, à saída,
é o monstro que escreve agora?
Ascese
a
Dea Conti
A luz do quarto sempre esteve acesa
apenas pela manhã.
Com que brancura a sua natureza
nacarada de romãentrou pelas janelas, pela entrada
da cozinha ou da fruteira,
envolta em uma nudez iluminada,
notívaga cerejeira.
Os passos, em silêncio de escultura,
fizeram com que a luz, antes escura,
fulgisse no seu corpo, feito a ascese
da carne desejada pela insônia,
em meio a uma extensa cerimônia
que alcança esta manhã, tão clara e breve.
Mondrongo, 2014
A flor
do vaso
Não há que ser inteiro feito um vaso
ou feito a vida do vizinho, ou mesmo
os dados biográficos da orelha
de um livro pequenino de autoajuda.Não há que terminar-se ou terminar
o suicídio, o esboço que é viver
de qualquer forma, Sísifo sem féretro,
esse palíndromo que nada fala
e continua em si, no todo em parte,
e na incerteza quanto ao fim da vida,
daquilo que se diz finalidade
e tem, como certeza, uma infinita
vontade de viver além, vontade
de ser a flor do vaso, apenas viva.
InternoHá quem procure
tatuagens em meu corpo.
E quando olham nos meus olhos,
é para ver se estão vermelhos.
Há quem procure drogas
em minha casa,
nas gavetas ou dentro
da geladeira.
Há quem procure comprimidos
atrás dos livros
ou sobre o criado-mudo.
Há quem pergunte
se ouço vozes,
na esperança de ouvirem
minha voz dizendo que sim,
que ouço vozes.
Há quem procure saber
se já fui preso algum dia,
depois de ter sido preso cinco vezes,
desde a gravidez de minha mãe.
E quando perguntam do que gosto,
entre excitados e gostosamente medrosos,
esperam ouvir seus desejos
os mais recônditos, escondidos
atrás de elefantes de louça
com as trombas viradas
para a direita da sala.
E quando cansam de procurar
tatuagens em minha pele, passam
tomografia, ressonância magnética
e psicanálise.
(Eles sabem que hemogramas
não acusam as pinturas
de William Blake).
Há quem procure outros
internos ao meu redor.
Mas eu já disse, inúmeras vezes,
que eu moro sozinho.
A casa onde morei
na infância
era imensa e cheia
de mistérios.
Os tios visitavam
minha sala
com freqüência
e com alarde.
Morava conosco
um tio-avô por parte
de pai, que fumava muito,
tossia muito e lia
todos os meus gibis de heróis.
As primas eram bonitas
e muito grandes, e só olhavam
para meu irmão mais velho,
que era baixinho e esturricado.
Meu quarto era nos fundos
e tinha uma janela
que dava para o quintal
da casa.
Um dia
todos foram à praia
e eu fiquei sozinho:
imenso e cheio de mistérios.
CasaO general escorre o sol
no corpo amargo de seus soldados.
Todos caminham como se marchassem
para o lugar exato de suas sombras
e lá penduram o olhar: na cimalha
de um edifício gasto mas seguro.
O general peneira o céu
no corpo roxo de seus soldados
sem relógio ou vaidade. Os soldados marcham
como se não fossem: como se estivessem.
Eles sempre estão. Marchar é uma casa.
E a qualquer momento o general
pode sentar-se para um cafezinho.
Estátua e praça
Não passa, jamais passa, e mesmo agora,
não passa e, mais adiante, jamais passa,
ainda que se marque, de hora em hora,
o rastro é próprio – ou o mesmo que a carcaça.A presa anda por dentro. Mas por fora
é presa de outros olhos, cuja graça
é olhar esse palíndromo, demora
de estar por entre a gente – estátua e praça.
Um ritornelo não consegue, enfim,
senão nos preparar para o passado.
E enquanto não nos chega logo o fim,
parece que não passa, esse atrasado.
lugar com textos sobre Luchino Visconti e Fernando Coni Caldas.Tem textos publicados no jornal A tarde, Correio Braziliense, Rascunho, Estado de Minas, revista Cult, e na revista cubana de teatro do Instituto Casa de las Américas, dentre outros jornais impressos e revistas. Ministra oficinas de introdução à Leitura Avançada e de Poética. Atualmente mora em São Paulo e escreve sobre teatro e literatura para o site www.expoar.com.br .