óleo “A ronda” de Chico Lopes
HORAS A FIO
Horas a fio vou desfiando teias
que se refazem inteiras
fiadas pelo avesso.
Estendo a mão ao invisível
e só recebo o aperto
de alheia mão de gesso.
O mesmo gesto que inaugura os
mundos
mundos
destrói-os, por fastio.
É eterno o recomeço.
A solidão do artífice é completa
e é sempre rota a ponta
da corda por que desço.
Comigo, é certo, não se fica;
só há minha presença
e meu segredo espesso.
Não sei há quanto tempo me contorço
aqui em torno ao poço
dos desejos.
Horas a fio vou consumindo o vago,
gastando a carne viva
em devaneios.
Giro o sarilho, baixo lerdos fios
e os baldes nunca voltam
cheios.
Minhas moedas não atraem a ninfa
que lá no fundo dorme
em colcha de receios.
Fiando-me no incerto,
não saio do meu posto,
guardião da água morta.
Falo de amor ao vento e às corujas
e as sentinelas turvas
que não me abrem a porta.
Se queres meu amor,
o que ofereço? Fios
de desconsolo, sombras
que se retorcem, densas,
ao sopro da tristeza;
cenas de inverno, sagas
vividas entre mortos,
a hera intemporal,
os sapos, os fogos fátuos,
as pedras incrustadas
no verde do meu limo.
É tudo quanto tenho
e a condição é amar
o mal com que me oprimo.
Horas a fio vou perseguindo a pista
de forma sempre omissa,
da vaga desejada.
A poesia é pouca
para reter-lhe o nada.
A coisa sempre escapa
e os êxtases não bastam.
Estou fadado a inventar fadigas
para emprestar sentido
à minha fraca vida.
à minha fraca vida.
É o elogio da sede
a que o deserto obriga.
Sempre ao redor do poço
vigio a água antiga,
porém de mim não bebo.
Por isso tanto invoco
um outro que desfaça
o encanto dessas pedras
que sem querer concebo.
Horas a fio vou construindo árias
de árida certeza,
ninando-me no solo
da eterna mão direita.
Os templos que me ergui
definitivos, tristes,
de escuras pedrarias
e abúlicas escadarias,
só levam a um altar
de ícones da ausência,
de deuses da indolência
num panteão de sono.
Não sabes como o orgulho
definha sem um dono.
Fiando ninhos, redes,
erijo-me paredes
e um túmulo é meu trono.
Pudesse eu me arrancar daqui
violentado, alado,
triunfador sobre a calma!
Choveria no deserto mais antigo,
no mais renitente e exato –
choveria exatamente nesta alma.
ALDEIA
O irmão da rua, seu gesto morto
contra a tirania do céu azul.
As ruas de pedra branca,
a branca ausência concreta,
as casas de pedra antiga,
velha Mu irredutível
com seus telhados cobertos
de antenas de televisão.
A calma idiota segrega
alguma coisa inumana,
pequenez radioativa
que consola e petrifica
e faz com que se adormeça
sobre um calor de excrementos,
ignorando a evidência
de afogamento.
A cloaca é morna, acomoda
e devora inquietações.
Nela a saudade da ação
é um bocejo infinito.
A força dessa irrisão
é tamanha e tão precisa
que não se vai para além
de certas ruas e praças
pelo medo de perder-se
o fio de alma mantido
na hipnose da rotina.
A identidade erigiu-se
pedra por pedra em segredo,
vago heroísmo e suspiro,
e fez-se montagem alta,
torre débil, minarete
ameaçado na base
pelas brisas da mudança.
Ali mais irmão da rua:
só lhes resta vaguear
em vias de eterna sede,
punhos, dentes cerrados,
bêbados, olhos espessos
de cachaça e abandono,
em aceitação raivosa
de uma paz que não cria.
Outros cantaram teu ópio,
a calma de eremitério
onde se perde o mundo,
mas a alma não se salva.
E há, sem dúvida, beleza
nessa quietude de adeus,
nessa lua depurada
que brilha alta, asiática,
sobre as casas, formas densas,
que ao toque da prata leve,
parecem poder levitar.
Eu canto a tua miséria
de língua atada, cansado
de me cansar contra nada
e investindo meu ódio,
o melhor de minha dor
na aposta de poder
um dia deixar teus muros,
teu silêncio canibal,
tua sedução opaca,
abismo de sono antigo,
anonimato sem Deus.
Chico Lopes, 66 anos, começou a publicar seus livros aos 48 anos, com “Nó de sombras” (contos, IMS). Publicou ao todo dez livros, em vários gêneros, sendo premiado com um Jabuti pelo romance “O estranho no corredor” (editora 34) em 2012. Seus livros de poesia são dois: “Caderno provinciano” (Patuá, 2013) e “Florir no escuro” (Penalux, 2016).