3 poemas de José Antônio Cavalcanti

Carretéis, 1959, Iberê Camargo


O colecionador

Coleciono chuvas
como quem cuida de orquídeas.

Águas de tantas nuvens
alargam-me o peito em quase oceano.

Não sei quantas naves
adormeceram no leito submerso
extintas viagens.

Qualquer gota
pode acordar os naufrágios.


Outono

Outro outono
varre folhas mortas lá fora.
Muda-se  o tempo,
a cama muda.

Nunca o mesmo vento
leva as palavras para bem longe.
de nosso alcance.

Que falta faz
o amor
quando  já não se alternam
as estações.


Hotel suspenso

Por uma fresta
entre a janela e a cortina
entra um suspeito de asas
à procura de pouso e almoço.

Hierático,
suspenso em silêncio na neblina
da lateral esquerda do quarto barato em Ouro Preto,
olho com ódio o hóspede inoportuno.

Permaneço imóvel
enquanto os olhos rezam promessas,
apesar do intruso miserável.

Não posso perder
o ouro fino da memória de teu corpo
na ladeira sinuosa
que sobe pedras e serpentes
de lençóis puídos
até o ponto mais alto da ausência.




José Antônio Cavalcanti é poeta, contista, ensaísta e professor de Língua Portuguesa e Literatura.  Autor de Anarquipélago (poemas), Ibis Libris, 2013; Palavra desmedida: a prosa ficcional de Hilda Hilst, Annablume, 2014; Fora de forma & outros foras (contos), Ibis Libris, 2015; Movimento Suspeito (poemas), Urutau, 2016. Participou da antologia 29 de abril: o verso da violência, Patuá, 2015. Vários textos publicados em Mallarmargens – Revista de Poesia e Arte Contemporânea, da qual é mallarmago,  além de colaborações diversas em  jornais, revistas e sites como Revista Zunái, Germina, Revista Eutomia, Caderno Ideias do Jornal do Brasil, Periódico de Poesía (MX), Cronópios etc. 

 



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