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Ilustração: Gönul Koçak |
do que tenho,
se tudo é possível
deve haver uma
janela
-sempre há uma janela.
não convenho:
da loucura preservo
essa obstinação.
do que convém
apenas tomo
o prescrito,
fora isso é
sempre
cabeça erguida
e sob a chuva
de nada me servem
as marquises
*
não é de tudo
que desisto,
mas de certa
qualidade de acolhida
ou entendimento:
mas de certa
qualidade de acolhida
ou entendimento:
ainda que encolhido
cabe a cada órfão
carregar com presteza
seus próprios cadáveres,
mesmo depois
de sepultá-los.
carregar com presteza
seus próprios cadáveres,
mesmo depois
de sepultá-los.
assim carregamos
os amores, e os sonhos
de amores, e a chama
dos amores que colhemos
com insistência antes de
desistir,
carregamos o cheiro
de um bolo de café
saindo do forno
às quatro da tarde,
e todas as palavras
de todos os livros
lidos e as lembranças
dos momentos vividos
e dos abortados,
carregamos o acidente
de vô e de vó e de pai
e de mãe que nós mesmos
somos, então carregamos
todos os passos
de todas as léguas
percorridas
e
até hoje desconheço
epíteto melhor
para deslocamento
que vai de norte a sul
que tirano,
seja metro, légua
ou palmo.
epíteto melhor
para deslocamento
que vai de norte a sul
que tirano,
seja metro, légua
ou palmo.
kintsugi
reparos de ouro
esses caminhos de rios
tatuados nos seios
pelas vias
do tempo
e do afeto.
é pele marcada
e ainda é pele,
paredes da casa
que habito
sem quitar,
que encobre
entranhas
mas revela
as intimidades
mais íntimas:
na ponta dos dedos,
a identidade,
na cicatriz da testa
a criança levada
do tempo em que
eram muitos
os lugares
à mesa,
na mancha do antebraço
o cigarro apagado
ali mesmo
em espirais
de desespero.
sobrevivente de mim mesma,
pele-palavra que grita
o mapa do percurso,
inventário maior
da vivência:
embriaguez & denso vazio
fome & cansaço
excitação & vício.
não,
não há nudez
incólume
*
aceita, esse choro nem é fraqueza,
mas também não me peça
pra ser feliz de domingo, gostar de
quatro
quatro
de novembro, colocar flor em vaso,
arrumar o armário, não tem problema,
não entender é mais completo,
eu sei,
mas aceita, que às vezes nem é
tristeza, é só
tristeza, é só
cansaço, só também não me peça
pra seguir a numeração
das páginas, colocar título
em poema, viver assim,
como se adoçar café
fizesse sentido
Lilian Sais é escritora, pesquisadora e tradutora de grego antigo. Doutora em Letras, é uma das fundadoras da plataforma de ensino e difusão cultural Literartéria e coeditora da Revista Libertinagem, de arte e literatura erótica. Possui publicações virtuais e impressas no Brasil, na Argentina, em Portugal e na Grécia. Em 2018 lançou a plaquete Passo imóvel pela Editora Cozinha Experimental, onde estão os dois primeiros poemas dessa publicação, e o livro Acúmulo pela editora Patuá, onde estão os dois últimos.
Uma resposta
Bom conhecer esses seus Poemas, Lilian, que chegam longe na visão e bem perto do coração da gente.