ato poético um
abalo inocente na pulsação
ao abrir um a um
os volumes de história
na livraria
em cada um deles
introduzir folhas
escritas à mão
capazes de bagunçar
dimensões dos fatos
e cronologias
acrescentar à queda
de uma civilização
a insignificância do encontro
entre duas pessoas desconhecidas
debaixo de um toldo
enquanto aguardam a chuva passar
o caroço do caroço
a poesia me achou em casa
na mesa
numa ameixa
suculenta
no fim o caroço sozinho
bala solta na língua
vagaroso, perdendo a dureza
até que uma mordida abriu a carapaça
quem diria: os dentes esbarraram
num caroço no interior do caroço
o dentro do dentro revelado
sobressalto no corpo
a poesia me achou
não para me apegar ao poema
mas para eu não desprezar a realidade
a poesia me achou no hospital público
na eternidade da saliva que pinga:
o pai dá de comer ao filho velho
tanta baba
o pai enxuga
gota a gota
com amor lento
prefiro que meus filhos
prefiro que meus filhos morram
a continuarem sofrendo tanto neste mundo
a frase daquela senhora
mal cabia na sua casa cubículo
enquanto a neta brincava no chão
mais e mais ruidosa
para que a brincadeira
fizesse mais barulho que a declaração
não para encobri-la
mas para inaugurar instante vivo
atravessar o terrível
desentulhar a sala e o destino