5 poemas de “Geografia de um retrato” de Vlademir Lazo

Ilustração: Hannah (Helene)

Vidraças
A
ninfa tece o olhar
No
pássaro conjugado
Na
malha da cortina
Faltou
lhe dar migalhas
Como
quem alimenta pombos
De
cidades imaginárias
A
memória como moldura
Um
quadro na retina
Enjaulada
na janela
Na
procura pela rua refletira
O
rosto se perdendo em outras esquinas
Viola-se
a verdade, forja-se a mentira
Em
restos de relatos murmurados
Pés
que se atropelam na calçada
Multidões
marcham em penitência
O
chão, prisão dos que não podem voar.
Então,
alegres, riem amputados.
As
pupilas povoadas de abandono
Sob
o olhar da ninfa e do pássaro no desenho
Uma
consciência que se autoexamina
A
mão suspensa ensaiando o aceno
Sibila
muda na janela, e o pássaro notívago,
A
antever dias infindos que se perpetuam
E
desconfiar do que prenunciam as aparências.
A moça do supermercado
A
garota do caixa do supermercado
proletária
de sonhos românticos que ninguém sabe
do
chocolate que lhe comprei e nunca foi dado
entre
restos de palmeiras e cinzas
na
cidade
de
sabonetes e frutas que lhe passam pelas mãos
para
depois percorrerem outros desvãos
comenta
do preço (alto) da cebola
a
caixa-registradora extensão do braço
que
ninguém a julgue pela crise mundial
ou
a culpe do crime federal
o
percurso da prateleira ao balcão
da
cesta emaranhada de produtos
é
uma caravela em viagem ao oriente
uma
astronave em excursão a Júpiter
o
supermercado o bordel diurno
cabaré
do futuro
a
garota no caixa,
ao
invés de mercadoria,
a
intermediária
do
consumo
que
substitui os sonhos.
 Erro espírita
  Emprestei meu Dostoievski
  quando ela visitou-me no apartamento
  acostumada com romances espíritas
  se deparou com o título na capa:
  Recordações
da Casa dos Mortos
  abriu o sorriso com a referência
  a mundos que a remetiam ao além
  e recolheu o volume em sua bolsa.
  Continuei na minha  dose
  desconhecendo ela que a Casa dos Mortos
  não é mais que a residência em que habita o
tempo.
  Cada um carrega no peito a Sibéria que lhe
coube.



         Evocações do mundo
editorial
                        
                                                         para Michelle S.
O Jovem funcionário da pequena
editora
flerta com a tua namorada
pedindo a ela poemas
insinuando possibilidade de
eventual publicação
em plataforma literária
qualquer:
jornal, revista, site ou livro
esperando da donzela em frente
que a pequena lhe entregue
material próprio
para que tenham em mãos o que
negociar.
O Jovem funcionário
que mal conhecemos a verdadeira
função na pequena editora
pensa em futuro convite para
jantar
onde poderão discutir com tempo
os prós e os contras
do trabalho literário da menina
no que ela tem de bom e no que
é preciso
melhorar.
O Jovem funcionário
sente que pode ser rico em
conselhos
e generoso no abrir e fechar
de portas que conciliam cama
& mesa de negócios
sofás e os bancos dianteiros do
seu automóvel.
O Jovem funcionário só não
espera
que a sua paquera
vá lhe levar poemas que o
namorado
mesmo escreveu em suas noites
mais
selvagens
e acessos de sangramento e
vômito
sob a influência de Roberto
Piva e Baudelaire
após a leitura de Dante e
outros poetas clássicos
de Bolaño e alguns marginais.
O Jovem funcionário
como aquele condutor que
estaciona a beira da estrada
o carro ou caminhão numa tarde
de primavera
atendendo ao chamado das
garotas
de vestidos esvoaçantes e
cabelos azuis
que lhe perguntam se poderia
dar carona
ao tio ou o pai que espera com
as malas a postos
no que o motorista já não pode
recuar
quase ergue as costas da
cadeira em que se encontra
inclinado
bufando à moça depois de ler
aqueles originais
que versos tão imprestáveis não
lhe passasse mais
literatura maldita não fazia as
honras da casa.
O Jovem funcionário
que fosse cantar de galo
em outra freguesia.
Ascensão
Era muito tarde na praia
onde a lonjura das casas
em que o tempo habita
não se mede, tampouco o mistério
das coisas escondidas se faz
com palavras, nem a filosofia
é da boca pra fora, mas secreta
teus pés quase afundados
na areia, os sonhos são
vizinhos,
o mar revolto e amigo,
passos em falso, sonâmbula,
e as trevas no alto
que caem do céu
como tintas escuras que
se misturam
a um azul recém-inventado.
Vlademir
Lazo
nasceu em
1982, gaúcho da Praia do Hermenegildo, na fronteira com o Uruguai, e
ascendência mais ou menos próxima originada desse outro país.  Colabora no portal Cineplayers e os poemas acima
integram o volume Geografia de um retrato
(Penalux, 2018), seu segundo livro.

Uma resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *