5 poemas de Germano Xavier

 

As babéis de Ses
 
(Parte I)
 
“sonhei que eu estava cuidando de um menino que era cantor, mas que por algum motivo parou de cantar (vida triste). Então, eu deitava com ele em uma cama de lençóis brancos e eu o protegia. quando minha mãe veio com um passarinho (meu passarinho)… então, eu o mostrei para o menino e ele ficou encantado com as gracinhas que meu passarinho fazia. o menino esqueceu da tristeza e começou a cantar. o canto do menino era tão lindo como o do passarinho. quando minha mãe veio apavorada dizendo que perto de mim tinha um “bicho” que ela conhecia e que ela sabia que comia passarinho. ela me mostrava a carcaça de um que ela tinha descuidado. Então, eu dei fé de onde estava o meu – ele estava protegido dentro dos meus lençóis e ficava me picando pela coberta. então, eu o peguei e o dei nas mãos da minha mãe para que ela o guardasse. perto de mim tinha um cachorro grande e simpático que gostava de mim – vinha como amigo -, mas eu não vi se minha mãe conseguiu guardar meu passarinho. quando tive uma madorna (sonho curto , com revelação). será que teu coração é de menino, menino? e porventura estavas triste? se for assim me alegro, pois sei que de algum modo contribuo com o alívio de tuas cores. no sonho o menino cantava como passarinho feliz.”
 
A moira turca
 
meu nome é um som no destino,
um som e uma estrela em baile, e você
em dança, dervixe assombrado,
escuta a minha música nos salões.
 
teço fio a fio o canto das faltas,
a dor da coisa real que dentro existe.
um amor – pois nunca acabou -,
deram-lhe… o interessante aroma
do que revive e me amas com tuas dores
e teus amores. e teus sofreres.
 
com tua morte e teu nascimento,
escalo tuas árvores e lá de cima desconheço-as,
como a guardar em meu cálix o que em ti germina,
ser teu sagrado, para ser infusão.
 
crio notas de amor visceral na imersão aromática,
e orgânica, substância em líquido-fogo que tudo agrava.
em águas vaporosas minhas, baroque em vil toada
– coisa que acompanha o devaneio -,
ligo o que surge ao que nos insere.
 
é, pois, através
do doce pânico das cordas
que nos adequaremos para depois em adentros.
ser um único texto, e por tal tomados na profusão dos vários,
ainda nos fertilizará algures uma espiritual certeza de amanhãs.
 
 
(Parte II)
 
“vez ou outra lembro do meu avô. ele tinha muito gado, uma criação inteira, farta. era alucinado por touros. paixão da vida. um dia ele me levou para o curral e me mostrou como se marcava o couro do animal. o ferro tilintava em brasa. vermelhidão. rubro panorama. brados eram ouvidos como ecos. o instante era um coice no vão do tempo. perguntei ao meu avô se aquilo não doía. ele disse que sim, mas que depois todos saberiam que aquele monstro lindo tinha dono.”
 
A história de Taurus
 
paraTaurus, 
besta imperial dos caminhos,
o amor era em gusa
a fera mais mortal dos tempos.
 
consentiu-lhe explicar aos homens, 
certo dia, os colaterais efeitos de tão fatal dor, 
o amor, posto bravio ser-bandeirante.
 
disse-nos, já em bordas da narrativa: 
 
“há uma besta maior, escondida em face mais fina, 
causadora de febres oculares instantâneas, 
e cujo corpo permeado por orifícios úmidos deixa 
visível a nascença de escorrimentos vaginais,
de larguezas e latejamentos, de ruminâncias uterinas
e de póros em alavanca. um vasto animal 
que fere com a mais densa beleza”
 
nos templos onde Taurus fora endeusado,
após séculos de meditações e preces,
o grande segredo enfim se revelara:
 
era a mulher 
 
a fonte de todo o amor do mundo,
monstro marcado em dor 
e dona de todos os homens.
 
 
(Parte III)
 
“em vaso de alabastro, acordes teus: atalcado, balsâmico, floral branco especiado quente, floral amadeirado. unguento, corpo ungido… aspergir em amor febril, sem passado ou futuro. sombra de tempo. pequeno espaço no peito. cheiro de amor. gotas de memória, lembrança dos amores que não tive – projeção profana das quenturas minhas. dor suave de saudade. cicatriz de ferida antiga. vontade de leveza, sublimação… incerteza (do que não é), certeza do que é e já ficou.”
 
O rótulo da obscena fragrância
 
reza a lenda universal
que um vetusto aroma fora criado
na manhã anterior ao dilúvio.
ao cair das primeiras águas, diz-se,
sob brasil luz solar, o céu era rubro.
 
das mãos de uma senhora louca,
cujos seios arfavam em delírios,
um líquido lacrimoso fora manipulado.
 
dele – refuta-se -,
nasceu a obscenidade nos homens.
um frasco poroso dava domínio ao seu corpo móvel.
a leve água dançava a sós.
 
aturdidos,
moças e rapazes e seres de todas as outras idades
o abismavam na pele dos olhos: um vermelho molho
a desdizer mornidões, 
a profetizar a música vital,
a inventar a pulsão.
 
e assim, apanhadas em benquistas visagens,
as malhas amorosas de todos os entes
foram se ululando na passagem dos tempos.
 
daí o sexo como morte em suspensão,
altivo recurso de vida contra a fome e as lufadas
do nada. daí esses assoalhos em gozo, 
estes brancos sangues súbitos,
semeaduras em botão.
 
 
(Parte IV)
 
“eu sonhei com você. no sonho era um garoto – que eu pensava ser você. o menino olhava fixo para um lugar. uma rua sem saída. eu pegava umas pedras que estavam no chão e dizia para o menino falar através das pedras. o menino me olhava como se tivesse entendido, mas não sabia como fazer. então eu o ensinava que duas pedras era não e três era sim. eu perguntava: você olha para o passado com dor? três pedras. ainda não perdoou? três pedras. então eu perguntava o que foi? o menino olhou para mim e disse: traição. eu acordei.”
 
Os azulejos de Iznik
 
os vestíbulos da velha cidade
escodem até hoje o crime maior.
contam os mais velhos, 
em tons de denúncia e de vergonha, 
que o grande Móris, 
rei das mais vermelhas terras, 
abandonou a mais certa das conquistas:
o amor de uma mulher.
 
castigado pelos julgamentos,
largou o reino e partiu em cavalgada
estrada adentro, noite afora, coragem além!
 
no caminho encontrou seu grande amigo
e confidente. a ele, um recado para seu povo deixou:
 
fugi do amor para conhecer a paixão, 
para ver de perto o pulso da vida,
para sentir o doce aroma das cores
que me afirmam o horizonte.
 
pérfidas podem ser minhas escolhas, 
mas, pelo rei que até o sempre amará seu povo, 
clareie as vistas dos meus em alvíssaras!
 
a paixão, fiel paladino, é um gigante amor!
 
 
(Parte V)
 
“sem sonhos no agora, não lhe conto nada. o mundo dá voltas e preciso da distância. estradas fazem o amor voltar? onde termina o amar?”
 
Morte a conta-gotas
 
há várias
formas de matar o amor,
mas uma só é encarte no tempo.
 
o amor se mata na maré subindo, jogando-o
na jangada ao mar, tarimbado mar. assim,
rebenta distante o que se formou ausente,
deita a rede de labuta, mundo faz armar
ciranda cadente, pancada de mar.
 
crescente e minguante, maré de aquietação,
quarto sem velas, desponta a navegação cirandeira
sem amar singrar, nem mais mar.
 
matadeira a saudade, tirana abandonadeira
dos chegares, desterros e degredos, recadeira
em mensagens quebradas, de mar. o amor se mata
 
sem que se chegue e sem que se fique,
como vasta peste malandra,
sacana imigrante dos peitos, danando-se
a alegrar rodas de língua enxerida,
o amor se mata no que se vai embora,
no que se tira da cachola, da cartola,
bornal de almas.
 
flor de manacá, flor da guavira,
caboclinha aperreada é o amor,
que se quebra em dobras e rimas,
embotada e encarangada na brincadeira
de deixar curta a vara, a cena e a reza.
 
boca da noite, estrela em baião,
meu coração é uma solidão de banzo,
que nem viola é remédio. princesa da natureza
é o amor, balaio de landuá, pião e rodopios,
vertente em galope, desconfio terreiro.
 
e na capela amarela o pecado domingueiro
é o amor. tudo sendo em malinuras.
corpo queimado, exílio no canto do vento,
 
deserto insone.
 
o amor se mata na fogueira fugaz, com o perfume
colorido do que não cessa, bandoneóns e milongas.
o mar abusado que chora cordas de infinitos,
que recebe o presente caviloso, que é dengo de morte,
que dá rabissaca e é atrevido, modelo de longes,
engasgador se bem feitas as amarguras.
 
o amor se mata na cordilheira,
nas procelas e nas tormentas
dos mistérios, nos bandolins do tempo,
nos acordes revoltosos. o amor arrebitado,
que escandaliza a vida e que se presta ao merengue
de todas as danças e de todos os instantes.
 
maestrino desobediente, enganador de ordens,
o que pede sem precisar, o que governa sem exército.
o amor, o amor que é mar, o amor que planta enfeite,
o amor que colhe somentes, o amor, amor,
só se mata em alto-mar.
 
 
Fotografia de Germano Xavier: Leilane Paixão
 
 
 
Germano Xavier é mestre em Letras pela Universidade de Pernambuco – UPE, especialista em Ensino de Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru – FAFICA e jornalista profissional (DRT BA 3647). Possui graduação em Comunicação Social/Jornalismo em Multimeios pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB e graduação em Letras/Português e suas Literaturas pela Universidade de Pernambuco – UPE. Desenvolve estudos e pesquisas sobre Literatura e Direitos Humanos – Comunicação e Cultura – Literatura e Letramentos – Língua Portuguesa – Linguística – Cinema – Educação e Educomunicação. Associado do GELNE – Grupo de Estudos Lingúisticos do Nordeste. Idealizador/Coordenador Geral do Jornal de Literatura e Arte O EQUADOR DAS COISAS (ISSN 2357 8025), periódico fundado em março de 2012 e que circula no Brasil, Portugal, Estados Unidos e Irlanda. Membro-fundador da REVISTA VISÕES – MATERIALIZANDO IDEIAS, que circulou no Vale do São Francisco entre os anos de 2005 e 2007. É colunista da revista e do portal ENTREMENTES desde novembro de 2011. Editor do blog-coletivo O GAZZETA desde fevereiro de 2012 e escreve desde 2007 o blog O EQUADOR DAS COISAS, cujo arquivo conta hoje com aproximadamente 1.900 textos de sua autoria. Em 2016, seu livro de contos  SOMBRAS ADENTRO foi finalista do IV Prêmio Pernambuco de Literatura. Possui publicações em livros, jornais e revistas literárias diversas. Baiano desterrado, natural da Chapada Diamantina, tem 33 anos e atualmente habita o agreste meridional pernambucano.
 

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