5 poemas de “O Lume e a fábula” de Rosa Maria Mano

 

A BOCA SANGRADA

A arquitetura da fé 
que move 
a raça,
Transborda 
taças,
retrai escudos.
Fé que não se sacia,
não dorme,
Ignora os vivos,
disseca os mortos.
Não sabe 
das teias, 
dos muros 
rompidos.
Da lama 
do poço, 
ancestral veio.
Dos portos, 
do que a mágoa 
aborta,
Da moça de branco 
algodão
Que habitava 
o portal.

Não sabe da ciranda 
dos cristais, do carbono,
da luz que se insinua
no breu
e morre em verde hora,
na boca sangrada 
da espécie humana.



A FÁBULA

O ácido do crepúsculo 
comia nozes
nos vãos do telhado.
Eu era cria 
de um morcego muito velho,
que sabia assoviar 
imitando o vento.
Longe do mar 
eu sangrava 
uma concha desabitada
e cultuava 
a chama azul 
de seda e lírios.
Silo de água nas palmas, 
o gosto do sal
adornava o amor ateu,
mortal, residual veneno
nas papilas 
que sonhavam
androceu e gin.
A velha que mora em mim
vasculha o antigo forro.
Busca o morcego 
pra lembrar do vento.
Em debandada,
as pétalas ex-brancas,
as cortinas, os lençóis
postos a quarar.
Anil e sol
expurgando a semana,
o susto, o gosto,
o fantasma exposto 
pela transversal fratura
Anônima, reparto
flores de Espanha
e do Cabo
com o espectro
(ínfima fagulha),
rastros sob os meus
na velha casa da Vila.
Ainda sobrevivem
as memórias calosas
sob o sol de extinto maio.
Fervem a esperança
e o zelo em calda
dos sessenta,
as febres e raízes 
dos setenta
ao som de solos
em sol.




AS ARMAS

Estende-se o vírus das armas.
As chamas queimam 
as águas da febre
interrompendo crisálidas 
– seda breve.
Havia um mar vermelho 
nos sonhos dos profetas.
E a costura de uma estrela 
híbrida, não manifesta,
jurava de morte o destino 
dos filhos da guerra.
Letais cardumes 
domesticando esqueletos 
de esquecidos naufrágios, 
de barbatanas de veneno e prece,
arrebentavam 
as escotilhas de sal.

A matilha segue 
o curso dos algozes.
Na praia, 
um gosto de mortalhas 
de cinzas e rosas negras
enfeitando 
as bocas das meninas.


O INCRIADO

A destra do meu poema
lambe a saliva do rio
pra guardar o gosto.
Caminho sobre um fio
de coração.
Arrombo as janelas do vento
e piso arrozais 
em seus sonhos de brancura.
Encilho pássaros improváveis,
amarro seus dorsos 
de impossibilidades
e de cruzes
onde se extinguem.
Eu chamo pelos mortos, 
pelos vivos, 
pelos fartos.
E dos incriados 
recebo a herança do que não é.
Água viva – latejar e funda 
fragmentando sangas.
Terra e revoada, 
um pouco mais, 
um nada.
Não sei se bendigo 
ou nego.
Rendo meu voo 
aos braços do adverso.


A COR AMARELA

A lembrança 
que ficar de mim 
seja 
a de uma cor 
desfeita
em amarelos,
a de um som 
que se perdeu 
dentro do sino. 
Os meus pés 
pairem 
sobre ossos 
e inspirem
um criadouro 
de silêncios,
de flores 
brancas 
enroscadas 
sobre o musgo, 
prenúncios
do tronco 
roto, 
do cheiro 
do que chora 
a lua 
quando vaza.
Memória 
transformada 
na doce 
calda 
do tempo, 
desafiando 
os olhos, 
seus dois cristais 
turvos
subindo, 
escalando 
os furos 
que a broca 
desenha 
– paciência 
e arte 
de presumir 
o fim. 
Antes 
que se aquiete 
e esfrie 
o sangue, 
o mágico fio  
do esquecimento
forme a teia 
que me enrede 
e teça 
um casulo
azul 
no véu 
do Tempo.


Ilustrações: Leonora Carrington




Rosa Maria Mano: nascida em São Paulo, onde vivi até os quarenta e um anos, com breve intervalo de cinco anos de residência na cidade do Rio de Janeiro, vivendo hoje à beira-mar, na cidade de Rio das Ostras, Rio de Janeiro. Curso de Letras interrompido no 4º período, São Paulo, atualmente, licencianda em História pela Universidade Estácio de Sá.
Atividades como escritora:
A primeira publicação, em São Paulo, uma coletânea de poemas sob o título Fruto Mulher, do qual participaram Mara Magaña, Maria Elizabeth Cândio, Maitê do Prado, entre outras.
Em 1983, Xamã, primeiro livro de poesias, individual. Com capa de Elifas Andreato e prefácio de Antonio Houaiss.
Participação na coleção Passe Livre, da Cia. Ed. Nacional, com o título Três Marias e um Cometa. Desta coleção participaram nomes como Pedro Bloch, Helena Silveira, Josué Guimarães, Fausto Wolff, Moacir Scliar, entre outros.
O Gato, Conto , 1998, D.O. Leitura, São Paulo
Coletânea Prêmio SESC de Poesia, 2000, Editado pelo SESC, Rio de Janeiro
Vento na Saia, poesia, 2015, eBookAmazon/Kindle
Manuscritos de Areia, 2017, poesia, pela Coleção Marianas, Ed. Marianas Edições/Bolsa Livro, Curitiba
Lábios-Mariposa, poesia, 2017, pela Singularidade Editora, Curitiba
Coletânea II Conexões AtlânticasBrasil-Portugal, poesia, 2018, julho, Lisboa, Portugal, Lisboa 
Participações
Premiada no Concurso de Poesia do SESC, Rio de Janeiro, 1999, tendo A Lua Negra em primeiro lugar na fase municipal (Teresópolis) e segundo na premiação final, na cidade do Rio de Janeiro. Ainda, segundo lugar em Teresópolis com Re(s)cendência, no mesmo concurso.
Vencedora do I Concurso de Escrita Criativa, nas três categorias, Editora LiberUm, 2016


 
 
 
 

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