MOLICEIRO DESLIZANDO AO LONGO DAS SALINAS
(uma ria à janela)
Sempre abri a janela para o mar.
A ria levava-me e trazia-me a casa
ao anoitecer. A cidade passeava
pela avenida que ondulava de gente
em gente, mas a laguna era a cidade
branca com casinhotas e trilhos no meio
do nada: a cidade que eu queria ser quando
queria ser moliceiro e amarelo pintado,
petisco de fogareiro, nome na madeira
a caminho da barra. Vivi perto de mim
nas avenidas do mar. Fui espuma de uma onda
que rebentou em letras e remo contra e a favor
do vento. Ainda hoje abro as janelas do mar.
Ainda me escondo no branco fundo das salinas,
mas o marulhar das águas traz à tona
palavras que sobem sem mim, e eu sou só
uma mão ao leme à procura do norte para
me perder nos seus cristais docemente salgados.
ANEL DE MOEBIUS À LAREIRA
(é preciso regar o amor)
Se fosses uma árvore eu chegava lá pelas onze
com um cesto de vime para colher as tuas sombras
e dizias – olha amor, este mar no inverno
é uma lareira onde trocamos palavras de fogo e ar.
E assim dentro das palavras íamos crescendo um
para o outro, os nossos ramos dardejavam em vogais
sonantes e eu sabia de cor a luz entre os teus ramos
como tu aprendias a soletrar os meus pequenos frutos.
Se fosses uma árvore não era preciso dizeres-me
que não há fora ou dentro na topologia dos beijos
como se não tivesses olhado o manto irreversível
dos meus olhos, o meu corpo ondulando até mesmo
ao lugar onde respira. Só dizias – caminho por ti sem
princípio nem fim. Acho que querias dar-me todos os
poros do tempo, tocar-me em palavras macias que
nada esperam. Ficávamos a ver o ar quente subir
pleno de graça, talvez nos beijássemos porque o amor
gosta de lábios e saíamos sempre junto ao mar.
E dizias: — chega-te a mim, as formigas são vorazes
de água e não quero que este amor murche de estio.
Sacudíamos as crinas, o dorso, o quadril redondo como
deus o fez e sabias que o meu corpo só se deita no teu
corpo com aves esvoaçando pelo anel de Moebius:
objecto magnífico em que nascemos cada dia.UM XAILE PRETO EM CADA FADO
(A ronda da noite na viela)
Há gotas de visível a rondar o fim do dia que súbito se apaga
em cinza. A rua passa numa mulher de xaile apertado.
Deixou há pouco de suspirar pelo seu amor, digo, pela chegada
dele. Agora que só o xaile a cinge aperta-se nas franjas negras
da noite. Sendo dia — amanhã e não ontem ou antes quando
as romãs tingiam de calor suculento — cada hora se toma
de frutos sombrios que se afastam dos lençóis ao rubro
num comboio de subúrbio, mas podia ser num bruto Mercedes:
assim como assim o fim do amor é indiferente a lantejoulas
ou brilhantes, porque só o brilho dos olhos nos conta as estações
da alma. Podia ter trocado a mulher por uma adolescente sem xaile,
a flor por uma tulipa, mas só pôde ter morrido numa cama
de hospital: depois de passar por tantas camas apenas um lençol
agora o cobre. Só a memória amorna um pouco a vida, como
um copo de leite, vá bebe ao menos alguma coisa. Quem diria
que as noites foram tórridas, as mãos dele escorriam por ela
como um vinho esponjoso agarrado às paredes da malga.
A mulher esquece-se de apressar os passos, porque o corpo
sabe que já nada a espera, nem a casa é casa. Escusa-se a
palavras de consolo. Caminhar pela ruela e esta desembocar
na mesma rua, pois o sentido é um pântano pestilento
de dor crua dentro do xaile que não aquece o frio. Por agora,
pensa o tipo à varanda da viela ao atirar a beata à rua. Depois
da tempestade passar, ele tem-na como certa e já se baba
nesta mesma noite em que a dor dela a torna impenetrável.
OS LIVROS, AS FOLHAS, O CORAÇÃO
(inconvizinhaças e subversões amorosas)
a Helena Vasconcelos
Em que lugar se juntam estas folhas cosidas em fogo
brando, apertando, por exemplo, Jane Austen contra o fogoso
Mr. Darcy? Sim, eu sei: os animais que se agitam como
loucos, as sereias e os inumeráveis não podem coexistir
num espaço urbano, não podem ir às compras ou tomar café.
Mas quantas vezes teria Jane Austen sonhado que era Lizzie
e Mr. Darcy a beijava desmesuradamente depois de um difícil
amor, de tantas páginas escrito? Jane Austen lendo-se
no próprio livro que escrevera, não é o que todos nós fazemos
agarrados à leitura? Borges e uma certa enciclopédia chinesa
são os alicerces de tantas casas, bibliotecas, livros de que Eco
diz rir de riso amargo e no entanto Austen e Darcy são
inconvizinhos, lê-se em as palavras e as coisas sobre os cães
em liberdade e os animais fabulosos. É por isso que os livros
são casas que podemos habitar, olhar lentamente a lombada,
abrir as portas, roçar o cheiro do papel, seguir as linhas
ou saltá-las porque de repente. Podemos desfolhar um livro
em puro devaneio, desfolhar é um palavra incrível que não
arranca as folhas ao passearmos nelas. E depois ler como se
o mundo desabasse. Jane tem insónias esta noite. Demasiado
cansada para escrever. Recosta-se no sofá, aprova Elisabeth
Bennet, contempla o Colin Firth da série que saiu na BBC.
O porte é exacto, este é o Darcy que escrevi, cogita olhando a
capa da nova edição absolutamente alheia aos direitos de autor.
DESIGN NO FEMININO
(as mulheres nas estrelas de alcatrão)
à Sofia Costa
As mulheres conhecem-se pelo andar. Não é a velocidade
dos saltos ou a idade tardia com que chegam ao café.
Depois dos raios cruzarem os ares e a rua estar deserta
elas abrem as portas e lançam centelhas pelos poros
fêmea até depois dos cem. Quando são avós as mulheres inventam
mimos como uma equação puramente matemática,
porque o amor das mulheres é rigoroso até à infusão de frutos,
ou folhas de tília a florar a próxima aventura dos meninos.
Já todas nos sentimos assim, amadas até ao infinito
e sem saber o que fazer com ele. É por isso que as bolsas
das mulheres são a terra do nunca com um final feliz,
quando encontram a chave e o batom e abrem as portas
de vermelho em sangue nos lábios com que beijam a vida
e o chocolate. Sabemos que são elas pelo andar
e não está em causa se é chato o pé ou as pernas tortas.
Se as conhecemos tão bem é porque estão longe da perfeição
e ao falarem dela riem-se da coxa enfeitada de celulite
quanto baste para escapar ao photoshop. Se o andar
as distingue é porque caminham com sorriso de ave
nos olhos da gente que ao passar recebe bolinhos da avó
ou uma sopa quente. As mulheres dependem da estação do ano
na temperatura com que se dão, dependem dos comboios
e das bicicletas porque o andar é inefável de ténis ou muletas.
Quando as mulheres se cruzam entre duas ruas não sabem de si,
da raça inconfundível que geram a dançar ou coxear,
da fusão dos meteoros no seu ventre de mãe ou de bebé,
porque o umbigo das mulheres é mesmo o centro do mundo
e lá no meio há um círculo de bondade a abrir como se fosse
um descapotável e elas uma noite de verão, ou só de estrelas.
Há uma linha directa entre o andar e o calor do ventre.
É por isso que o colo das mulheres é valioso como uma estrela
e se reflecte no andar para que todos saibam que são elas,
as mulheres, e rebentem o desemprego e o desamor,
a escavar o amanhã e o depois num país sem tréguas.
Tudo isto porque as mulheres passam e o andar delas
nunca promete ou mente. Simplesmente dá.
A SOLEIRA DA PORTA: GLAD FOR THE PRIVACY
(while others may prefer Julião Sarmento)
A soleira da porta. O ímpeto inscrito no pé. Enquanto outros
comem pão e inércia para terem tempo de não escolher.
Se a palavra “saia” por exemplo, for mais prosaica
do que a palavra“ vestido” e a anca mais carnívora
quando impele o vestido, mais etérea que na saia enquanto
outros. Um homem espera-a no quarto. Se a soleira
for um limiar para a verdade não restará um minuto
de beleza. De tronco nu, a espera. Há uma linguagem
invisível entre o homem e a mulher, esta provisoriamente
em pausa equídea sobre o pé desnudo. O corpo está lançado.
A mulher veste o único lugar que indetermina a sua vida,
o seu rosto, os ombros soltos no vestido. Os passos de ir e
vir preparam-se do cimo, do olhar que trocam, ou talvez ela
queira simplesmente surpreendê-lo. Reter este momento
seria anulá-lo e no entanto é difícil resistir à perfeição:
a soleira é o lugar provisório de todos os possíveis.
Indiferente às preferências dos outros, a mulher. De onde
veio? Tímido movimento oblíquo das pernas acariciando
a palidez do vestido. Abraça-o e ele sussurra-lhe nada.
Só para este fogo que enevoa a voz sem palavras dentro
das entranhas. Amas-me? Enquanto outros podem preferir
o silêncio. Cadências. Passas-me as calças? Foi bom, sim
foi bom: talvez outra vez. Afinal como te chamas? Enquanto
outros podem preferir saber o nome à entrada e gritá-lo estrebuchantemente. A
mulher à soleira ignora ainda que o amor
mulher à soleira ignora ainda que o amor
não é a moldura da porta e a transparência do vidro confunde-a.
Mas o corpo está lançado e nada lhe apazigua o ventre. Usa
o movimento que a ousa enquanto outros tentam a todo o custo
estar definitivamente em nula parte. Já nos olhos se abraçam
ternamente antes de se precipitarem no branco do lençol.
O homem ama-a com os olhos e com a vida. Fazem café
enquanto a água corre e a mulher ferve e ele repete palavras
quotidianas. Ela está no limiar, um pé pousa-a enquanto o
outro voa de um limiar a tantos, de um limiar aberto onde
todos os nomes, todos os rostos são um conjunto infinito.
todos os nomes, todos os rostos são um conjunto infinito.
Poemas de “Traçar Um Nome no Coração do Branco” (Assírio & Alvim) semifinalista do Prêmio Oceanos 2019.
Rosa Alice Branco (Aveiro, 1950) é uma poetisa portuguesa.
Em dezembro de 2016, a sua obra O Gado do Senhor (Cattle of the Lord em inglês), foi seleccionada como um dos “10 Melhores Novos Livros para Ler em Dezembro» pela conceituada The Chicago Review of Books. Este livro foi traduzido por Alexis Levitin e publicado nos Estados Unidos pela Milkweed Editions.
OBRA POÉTICA EM LIVRO
Traçar um nome no coração no branco, Lisboa, Assírio & Alvim, 2018-12-21
Concerto ao vivo, ed. & etc, Lisboa, 2012.
Gado do senhor (Prémio de Poesía Espiral Maior), ed. &ETC, Lisboa, 2011.
Gado do senhor (Prémio de Poesía Espiral Maior), ed. Espiral Maior, Coruña, 2009.
O Mundo não acaba no frio dos teus ossos, Ed. Quasi, Famalicão, 2009.
Amor Quanto Baste (desenhos de Paulo Neves), ed. Gémeos R., Porto, 2005.
A Palmeira de Kairouan (fotografia de Rui Mendonça), ed. Gémeos R., Porto, 2003.
Soletrar o Dia – Obra Poética (1988-2002), Ed. Quasi, Famalicão, 2002
Animal Volátil (com Casimiro de Brito), ed. Afrontamento, Porto, 2002
Da Alma e dos Espíritos Animais, ed. Campo das Letras, Junho de 2001
O Último Traço do Pincel , ed. Limiar, 1997
A Mão Feliz, ed. Limiar, 1994
Monadologia Breve, ed. Limiar, 1991
Animais da Terra, ed. Limiar, 1988
No Brasil: Soletrar o Dia, Escrituras, São Paulo, 2004.
EM LÍNGUA ESTRANGEIRA
Em inglês:
Cattle of the Lord, trad. Alexis Levitin, Ed. Milkweed, Minneapolis, 2016.
Em italiano:
Lei disse, trad. Valeria Tocco, Ed. Ortica premio, Ortica, 2012.
Em árabe :
Do Verde até à Árvore, tradução de Moncef Louhaïbi, Tunis, 2002.
A Palmeira de Kairouan, trad. de Moncef Louhaibi, (lfotografias de Rui Mendonça), ed. Gémeos R., Porto, 2003.
Em francês :
À ras du sol (livre d’artiste en 7 exemplaires numérotés et signés), trad.François-Michel Durazzo, ed. Livre d’argile, Nice, 2012.
Le monde ne finit pas dans le froid de tes os (se dit-elle), trad. de Patrick Quillier, ed. PHI, Luxemburgo, 2008.
Épeler le Jour, tradução de François Michel Durazzo, ed. DesForges, Québec, 2007.
O Beijo do Infinito, tradução de Catherine Dumas, Genève, 2002.
Em espanhol :
Deletrear el Dia (obra poética) , trad de Xosé maría Álvarez Cáccamo e Carlos Osorio, ed. Monte Ávila, Caracas, Venezuela, 2008.
Horizonte colado à Pele, Tradução de Xosé maria Alvarez Cáccamo, Espiral Maior, Coruña, 2002.
Em corso:
Cumpità u ghjornu, trad. F.M. Durazzo e Ghj. Thiers, ed. Albiana, Aiacciu, 2009.
LIVROS DE ENSAIO
– (no Brasil) A condição secreta do visível: a percepção na natureza e nas artes, ed. Escrituras, S. Paulo, 2009, ISBN: 978-85-7531-342-8
– A Percepção visual em Berkeley, ed. Fundação Eng. António de Almeida, Porto, 1998, com Prefácio de Fernando Gil.
– O que falta ao Mundo para ser Quadro, ed. Limiar, Porto, 1993.
LIVROS DE FICÇÃO
Branco, R. (2017). Il mondo in italiano/O mundo em italiano. Trad. Paolo Andreoni. Porto: Associazione Socio—Culturale_ Italiana del Portogallo Dante Alighieri.