e foi quando a equipe médica entrou no quarto que o Doutor recusou-me o tratamento e negou enfaticamente a minha internação, alegando que meu caso era de exorcismo e eu achei por bem não contrariar, embora enquanto ele falasse eu rasgasse minha camisola hospitalar gargalhando aos quatro ventos cortados
Estou na ala dos psicóticos porque não existe vaga para a minha categoria: “Histriônica com tendências suicidas”, diz aqui, no prontuário. Hoje pedi para que me raspassem as axilas (nós, as internas, não podemos tocar em nada que tenha potencial perfurocortante, as cuidadoras fazem tudo, só falta limparem a nossa bunda), pois veio uma enfermeira negra linda, gosto dela, mas ela tá de caso com uma pós-adolescente oligofrênica do outro corredor. Não me olha nos olhos. Passa um sabonete qualquer, molha com um paninho e a cada lapada de gilete eu sinto que ela vai lamber meus cantos recônditos. Fico só na fantasia. Ela é ligeira, terminou e logo me manda para a fila da medicação. É a negra linda que me manda sempre abrir a boca pra ver se eu engoli direitinho (antes eu guardava numa brecha dentro da boca e depois cuspia; me pegaram). Agora eu engulo. Queria essa enfermeira invadindo meu dormitório na madrugada. É ela também a única que me segura quando eu surto, derrubei três enfermeiros e a coordenadora, mas com essa eu não consigo; é forte, a desgraçada. Tô arquitetando a minha fuga enquanto finjo que estudo Astronomia na internet; liberada apenas para as meninas de “menor potencial danoso”. Apois. Eles que pensam. Sou boa enganadora. Quem me conhece não me compra.
Minha habilidade grosseira em narrar
tragédias cotidianas abruptas
(quando muito a surpresa de um espirro)
O drama todinho de uma vida em 4, 9 ou 15 linhas.
Quem há de resumir tanto pesar?
“escrevo-te estas mal traçadas linhas, meu amor”
Ou uma faca
cortando sua testa de fora a fora
gravei sua gargalhada mais sinistra
enquanto ameaçava suicídio
_ te faltava cojones para tal _
E continuava batendo a cabeça
(cheia de cocaína) na parede.
Quisera eu saber morrer por menos.
Décima quinta, já está.
Meu amor me trocou por um aplicativo de sexo casual o amor me trocou por unidos venceremos e um pé de Iemanjá pisando descalça no chão da sala onde deitei e esfreguei a buceta em posições absurdas de ballet. Trocou meu Grimório por um livro de São Cipriano. O amor me trocou por um quarteirão com queijo batatas fritas coca-cola, trocou seis por meia-dúzia trocou uma nota de quinhentos, trocou meu voo de lugar, trocou 3 gramas na biqueira me trocou por uma vídeo-chamada, me trocou por cabeçada na parede, cortou a testa de fora a fora e me trocou como trocasse de cueca zorba modelo antigo de algodão me trocou por uma banda de metal sueca me trocou por uma viagem a Helsinque e a Finlândia inteira, o amor me trocou por uma paisagista calma e equilibrada como devem ser as paisagens. O amor me trocou por um jardim de amor-perfeito e dentes brancos.
um dia eu quis correr até você
um dia eu quis te comer até os ossinhos do quadril
encher seu umbigo de espumante
eu quis,
quis sublimar tua existência
não pude
você vai morrer nos meus arquivos mentais
como a dancinha de embalar pelúcias
e aquela trança única que tentamos
entre um jogar e outro de cabelos
mas você é imortal, desgraçada
te amo e te odeio
você e sua cara de sonsa
e seu cheiro impregnado
(não desgruda, tá sempre aqui)
Meu mistério explícito aos cegos.
o jeito porrada de tanto levar tombos na vida
Minha casca, carapaça é a estética da surpresa.
Mudei o lugar do sol por sua causa, homem
e ponto.
Qual seja.
Busco estar sempre inserida nos teus planos
_dou sim, aquela forcejada de fêmea_ e entro
Acho que é amor
(não saberia precisar com plena certeza)
Queimo a língua antes de dizer TE AMO.
Edição orientada Por Ana Farrah.
Ana Farrah é gaúcha de 1981. Teve sua escrita notada nas redes sociais quando seus textos começaram a ser publicados em blogs e revistas eletrônicas de literatura contemporânea no Brasil e em Portugal. Participou da coletânea de contos Sete Pecados, pela editora Scenarium Plural e da antologia ‘Contemporâneas’ na revista Vidas Secretas. Publicou poemas também no Livro da Tribo, pela Editora da Tribo. É colaboradora/curadora na Malarmargens, revista virtual de poesia e arte contemporânea. Escreve sem eira em poesia sarcástica, mas transita entre outros estilos. No momento, Ana trabalha com estética e escreve nos intervalos entre uma massagem e outra. Publicou o livro “Orquídea Trepadeira e outras flores ordinárias”, em 2017, pela Editora Benfazeja; em 2018 publicou “Os Mortos do Apartamento 21”, pela Editora Patuá. Seu próximo livro, ‘Demônio de Pelúcia’, tem previsão para lançamento no ano que vem.