6 poemas de Insônia amorosa de Sérgio Aral

Ilustração: Karin Lambrecht

Espelho

A navalha cautelosa alisa o rosto
afago que chega a enternecer!
A jugular se oferece
em troca de um dia feliz.

O sangue goteja na pia,
a barba está feita.

Enfim,
um duelo!


Carinho de mãe

Minha mãe é sabichã:
gosta de deitar cartas para adivinhar o destino
e aferventar ervas maceradas em caldeirão de barro,
feito benzedeira da roça.

Se diz filha de orixá,
mas recita versículos de livro apócrifo
como uma boa cristã.

Sempre com um sorriso pronto
me aconselha a afastar a pretensão
de ser engenheiro ou advogado,
jornalista também não

e assevera:
vai ser ferreiro
por herança de bisavô!

Esperneio,
repito que vou ser poeta,

e ela renova as folhas secas
de camomila dentro da fronha
e me manda dormir mais cedo!


Agora

A vida pode ter fim
sob a mira de um meteoro,
que invade fulgurante a atmosfera,

ou num ataque inopinado
que surge dos recônditos da artéria,
fulminante epílogo improvisado.

Não quer dizer o que sente?
Lançar o maldito te amo
abrupto boca afora,
gritá-lo como nunca
agora?



A lua me convida

Escondo-me
e a lua sabe de mim.

Sou insolente
e a lua me dá arremates.

Revolto-me
e a lua me consola.

Sou pacífico
e a lua me expõe o brilho orgulhoso da baioneta.

Entrego-me
e a lua me encoraja.

Sou intrépido
e a lua me convida para uma dança orbital.


Leitura dinâmica

Correr muito
de perder o fôlego
sem tempo para sublinhar uma só frase!

A pressa de virar a página,
saliva no dedo
e outras páginas mais,
muitas imagens conhecidas,
uma sucessão de coincidências,
sussurros aflitos de déjà vu.

Um tanto de desilusões,
um recipiente de vidro cheio de emoções,
que escapa das mãos e se fragmenta…

Um conto desestruturado,
uma varinha mágica que não funciona
como a perturbação mal roteirizada
da vida que nunca quis ter.

Ou de uma vida que sempre quis percorrer
pela trilha do mapa
de um lugar desconhecido,
sua cadeia de montanhas,
o ponto culminante,
o frio no estômago
ao encarar o pôr do sol e,
depois de molhar os pés na água fria
de um rio escondido na estreiteza do vale,
deparar-se com o X do tesouro.

E no final
surpreender-se ao espelho,
o coração arrítmico
e as mãos vazias…


Corporal

Eu sou um índio
e só a minha bisavó percebe
que brinco com fogo porque não sei dançar.

Os morcegos dançam,
as onças-pintadas,
os porcos-espinho.

A mãe,
o pai e as crianças;
os contraparentes,
os convidados,
os prisioneiros
todos bailam
como mariposas
em volta do crepitar do fogaréu.

O pajé conduz tão bem o ritmo
que até o ajucará sacoleja no peito do cacique!

Somos todos felizes
na minha aldeia

quem não entra na ciranda
é lançado na fogueira!



Sérgio Aral nasceu em São Paulo, onde mora. Participou do volume 3 da coletânea de poesia Hiperconexões: realidade expandida (Patuá, 2017) e é autor dos livros Sobre essa esfera suspensa (2016) e Insônia amorosa (2020), poesia, publicados pela Editora Penalux.


Uma resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *