6 poemas de Jorge Rein

 
ÉRAMOS UMA VEZ

as lágrimas do gás
evaporavam nas dobras
de algum lenço embriagado
em licores de amônia

as outras choviam soltas
assim como os gendarmes
chutando liberdades
com suas botas
de sete línguas mortas

nos salvava a insolência
daquela utopia torta
que arrancava vitórias
da carne das derrotas
e nos aguava as vistas
ao velar cada insônia

voltaram os desertos
a erosão nos devora
e a aridez cegou os olhos
que não mais umedecem
ou que pouco se importam
em prantear tantas lendas
que não foram história


MAIS-VALIA

talvez seja um deserto
 o que nos atravessa
e o vento logo esqueça
nossos passos na areia

somos o que nos cega
somos o que apagamos
com a mesma moeda

nos fascina a palavra
antes mesmo que a ideia
e a herança é mais-valia
mais valia perdê-la


MAÑANITAS

o aroma do café me amanhecia
e pelos cantos
da boca adormecida
rondava uma canção
desesquecida
das desafinações

corpo a pouco vencia
amarras de preguiça
e soltava alegrias
de beijos e de bolos e de pães

outros tempos talvez
fosse outra vida
os sonhos não murchavam
logo ao primeiro berro
de indecentes
manchetes dos jornais


PROFECIA

era um sábio e me disse
enquanto eu celebrava
o parto do homem novo
e outras façanhas

era um sábio e me disse
como se nada:
não esquece do endereço
em que deixaste as armas

e partiu dando coices
de mula manca
derrubando transeuntes
com sua bengala


E A CONDENA É PERPÉTUA

ser gauche era comum
na minha casa
mas eu exagerava
na receita
testando na metáfora
os limites da audácia
acordava entre rimas
e adormecia no ritmo
da cantiga inventada

minha mãe me falava:
“Vai ser poeta na vida”
na minha ingenuidade
achei que aquilo fosse
desejo oculto dela
mas era uma sentença
e ainda não achei a graça


DE PASSAGEM

uma gota de orvalho
desenha na vidraça
o canal de uma lágrima
e o rosto refletido
aceita a cicatriz
e adota essa tristeza
que não é nossa nem nada
que é alheia mas não falsa
e às vezes nos assalta
numa estação de trem
no rebanho mirrado
que em torrões ressequidos
faz de conta que pasta
numa moça de luto
que amamenta um embrulho
numa gare deserta
sentada sobre a mala

a dor é passageira
e logo o vagão anda


Ilustrações: William Blake




Jorge Rein: Contista, poeta, dramaturgo e tradutor. Nascido em Montevidéu, Uruguai. Residindo em Porto Alegre/RS desde 1971. Alguns livros publicados, textos premiados e/ou encenados no Brasil e no exterior. Entre as publicações mais recentes, Grafiteiro do Avesso (poesia, Ed. Patuá) e o eBook Cartas Trocadas, em parceria/cumplicidade com a escritora e poeta Adriana Bandeira (Ed. Bestiário – disponível na Amazon).   Redator de conteúdos poéticos no site infantil Canto dos Mafagafos.


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