6 poemas de Marcelo Gaspar de Souza

 
 
Rum cubano
 
O quadro torto, quase caindo da parede,
O relógio velho já não faz tic tac,
A casca seca, no canto escuro, atrás do rack,
Simbolizando o que já foi uma barata,
                      [assassinada pelo tédio,
O litro quebrado de rum cubano (que não tomei), 
Seus cacos ainda em cima da pia.

O cinzeiro com cigarros amassados, nunca acesos,
O revólver na gaveta de meias, 
Sem munição, enferrujando minha memória,
Meus cabelos brancos insistem em manter
Minha cara ainda mais decrépita,
Os dentes amarelados pelos cafés de uma
              [vida inteira de insônias e agonias,
Transcendem o fígado calejado de cachaça barata.


As feridas corroem o pé esquerdo:
– Maldita diabetes!
Os vermes alimentam-se das sobras de
Comida deixadas na panela queimada,
Em cima do fogão fragmentado-se
                                  [em ferrugem,
O cheiro forte do gás, ligado pelo demônio
Em minh’alma, já absorve
O que me sobrou de raciocínio
O corpo enfraquece.

Um sorriso manchando interrogações,
Uma última música toca no amargo peito:

     “(…) Mas não tem revolta não
     Eu só quero que você se encontre
     Ter saudade até que é bom
     É melhor que caminhar vazio (…)”

Repetition
 
Quando criança, eu escutava Repetition, da
banda Information Society, na rádio gazeta
Depois, matava aula para caçar figurinhas do filme
o rei leão, 
Chiclete ping pong, largados nas sarjetas por
meninos desavisados
 
Enquanto outros garotos jogavam bola de gude ou de
futebol
Aprendi a me colocar pra fora do portão trancado
Em outras vidas congeladas, dentro de bolhas
regradas a leis indigestas
 
Na rua via os carrinhos de rolimã cruzar o asfalto,
faisquinhas quicando como bolas de basquete
Depois, ouvia katinguelê no 3 em 1 do meu tio e
pensava nas meninas que eu queria namorar
Enquanto do outro lado da gaiola, a vida flutuava
sob nuvens de sangue e lembranças
 

 
Foi-se o rádio,
O rei leão,
As rolimãs,
As músicas,
as meninas e 
Ficou a relatividade de uma vida 
E as possibilidades encrustadas em cada 
fragmento do impossível.
 
 
 
 
 
 
***
 
Os discos empoeirados que não tenho mais

Os livros abandonados, fora de ordem,
Na velha estante (que não está comigo)
As poesias que escrevi para você em papel almaço,
Desbotam na lixeira que foi embora com nosso chih
tzu
,

             

         [já cego e cheio de tumores

Ficou apenas o céu estrelado, noite fria
Cigarro e uísque,
Na rua, poemas me ignoram
Num canto sujo de uma calçada qualquer
Do centro da cidade.


Ilustração: Margaret keane
Margaret Keane
 

Seus
olhos são obras de Margaret Keane
Vejo-os faiscar estrelas do mar
Toda mentira torna-se poemas incrustados
Em cavernas afundadas no vale dos ossos
Neles há solidão, como remédio genérico vencido
Os acordes de sua pupila dilatada
Reluzem uma tocata de Bach

Esta distância é muro alemão:
Só a liberdade de nosso afeto pode derribar
E mesmo assim profetizei destruição:
No horizonte petrificado e cinza de seu coração
Fumando narguilé e vendendo tóxico à burguesia
Destituir-se-ia de transcendentalismo e compaixão

Seus olhos agora são sapos esmagados
Quando tentavam atravessar as estradas de Pernambuco
Um destino incerto após dia de chuva
Sua brevidade escandaliza meu agônico prazer
Privando-nos de lucidez anárquica
Incendiando-nos de putrefações do coração
E a cura se chegará no botequim das ilusões
Pálidos olhos negros e mortos
Minha tendência é a sombra
Minha vida já não é, porque teus
Olhos de Margaret Keane, já não são

 
***

No sopé do monte mais sombrio
No
dia 25 de junho de 1918,
nevou em São Paulo.
Um dia esquisito.
Era transmutação.
Oswald de Andrade agasalhou-se.
Mário de Andrade tomou chá de camomila.
Anita Malfatti dormiu até às 9h30.
 

dias que o frio de seu coração faz nevar nas ruas glaciais,
do sopé do monte mais sombrio e indivisível de meu querer.
Mesmo com árvores milenares queimando na lareira da solidão,
teu olhar alvo cai na do telhado frágil de minha alma,
num amanhecer preguiçoso,
débil,
com sol tímido e apaixonado,
apontando para o horizonte.
 
 
Utopia
 

Sorrateiro,
se arrasta nos becos lúgubres
Insurgente, conta passos de trevas nas varandas

 [de casas rangendo dores crônicas
Atônito, não enxerga o peito em chamas

     [e sangue
Ah! O estrago da demência sombria
Campos de trigo morto, caído sob a relva
A catástrofe profetizada no pergaminho

       [da biblioteca secreta
Casto, não compadece de suas privações
Dúbio, chora desespero e raiva flui de seus

[lábios destituídos de sorrisos
A fome de morte devora as vísceras
A lua reflete suas fraquezas, destrutivas e vãs
Ah, se o silêncio o levasse para terras planas
Se o sal da terra lhe tirasse o fel impregnado
Se o vapor que sobe dos pântanos de sua
alma fossem céu encoberto de tristeza

       [mas tristeza branda
Veria risos e sentimentos límpidos com peixes 

 
                    [a
navegar sob sonhos invernais
Lá seria sua eternidade sem sombra

 [sem dúvida, sem ódio

 
 
 

Marcelo Gaspar de Souza é baiano, criado em São Paulo, hoje reside em Pernambuco. É graduado em Análise e Desenv. Sistemas, pela Fatec SP. Autor do livro de poesias A noite continua num gole de cerveja (2017). Perfilo Facebook: https://www.facebook.com/marcelo.gaspardesouza
 
 

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