7 poemas de “Florir no Escuro” de Chico Lopes

 
 
 

 

DÉCIMO CÍRCULO
 
Será sempre noite alta em meu canto
e falarei de amor como de um sonho
narrado por um louco a outro louco
no hospício sem medida onde sonhamos.
Será sempre noturna esta poesia
que buscará, exercitando treva,
desentranhar da noite o vago dia.
 
Corujas cantarão no mesmo canto
o agouro essencial, flauta de insônia,
esta cantiga de ninar fantasma
que abre a noite em cava hospedaria
trazendo lua, vento e galharia
até os corredores abstratos
e os quartos frios onde  ciciam ratos.
 
Não haverá descanso, o meu segredo
terá de ser rompido medo a medo.
Verei em cada sombra uma ameaça
de confissão ou morte, perseguido
por um duplo encarregado de matar-me
a golpe de sussurro ou gargalhada
no brusco de uma esquina, no topo de uma escada.
 
Amor, ocupa meu desterro com teu eco
que, pertencendo a mim, eu só me invento
as mais escuras formas de  pressentimento.
Sozinho, com que horrores me entretenho!
Socorro, pois o orgulho não respira
Piedade, que de mim eu não a tenho.
 
 
VERME ARDENTE
 (Para Marcelo Adifa)
 
Nós nunca fomos senão doentes,
nós somos a doença, o mal sem culpa,
mas sem remissão, a dor
intolerável convertida em hábito.
Sorrir putrefato, sorrir já sem lábios;
a vida interessa, o Inferno interessa,
a gula acende a lâmpada possessa.
 
Nós sempre fomos carne, carne de hospital,
carne interessada que a cruz não aplacou.
 Viver dói cru e nunca basta
miserere nobis, mas há festas
por toda parte, e a carne infatigável
reclama por mais carne, mais doença
e a solidão tem fome e a dor não pensa.
 
 
Nós sempre fomos carne, inconsciência
alerta para a meta que depressa escapa;
a infâmia nos engorda, um sol de pus
inunda de ouro dúbio os bares e as pocilgas.
Estamos sempre nus, sempre suspeitos
de lepra mesmo em meio a mil perfumes,
suspeitos de existir como existimos –
entre céu e cloaca, templo e latrina,
no limiar da flor que contamina.
 
Nós somos carne e peso, existir é denso,
a criatura é gás, suor, sangue, dejeto,
a criatura é queda que se apruma
precariamente em pose contra o vento.
Estátuas se erigem do excremento,
miasmas se convertem no etéreo,
a música quer ser limpa e o sopro erra
entre nesgas de céu e sete palmos de terra.
 
Assim, querendo ou não querendo, há o tumor
que anseia por inflar e absorver,
insiste a voz que canta rouca e falha
dos pulmões vazados, dos confins de palha.
 
Um quê de Paraíso comicha e espicaça,
se revolve inquieto, cúpido roedor.
É um verme ardente. Quer chamar-se amor.
 
 
LULLABY 
(Para Tonho França)
 
Dorme, menino, dorme,
cerra esses olhos enormes,
torna àquele reino informe
onde as coisas não acusam,
não torturam, não insistem;
melhor que tudo: inexistem.
 
Dorme, que eu te vigio,
dorme, que eu não descuido
da vela oculta em teu corpo,
débil lâmpada de sonho
que morrerá sem meu zelo
insone, obsessivo.
 
Enquanto dormes te conto:
lá fora chove desprezo
e mais um carneiro foi levado
nítido, ensangüentado
a um banquete de infames.
Tudo sei que me assassina
e eu o sei sem cessar,
vendo em lívida minúcia
cada ato, cada coisa
que desmonta a arquitetura
da esperança.
 
Não tenho para te dar
mais que a presença calada
que te embala, precavida
contra a própria indecisão
entre amar e destruir.
E as histórias que conheço
são de tirar, mais que o sono,
o possível de dormir.
 
Sei de cegos que se buscam
em breu fechado, os dedos
tateando bocas, olhos,
portos de confirmação,
e só encontrando barreiras,
cobras, pregos, simulacros
na armadilha montada
pelos senhores secretos,
oniscientes e fátuos
que manipulam a luz.
Sei de enterrados vivos
que, mortos, não podem morrer
e não articulam o grito
que não, não adiantaria
pois que os outros dançam, comem
(e sempre mais comem que dançam)
ou discutem o que fazer
dos sábados sem programa.
 
A hediondez é macia,
há conforto nas ruínas,
e nos jazigos polidos
a família delibera
o futuro dos meninos
que já é todo um passado
a ser percorrido em vão.
 
Borboletas na parede
varadas por lentas agulhas,
pássaros de luz e assombro
estraçalhados no asfalto
ou pendurados em carros
como vívidos troféus
de atropelamento.
Anjos em sacos de lixo
agonizando entre restos
pois apareceram a homens
que não lhes viram o préstimo.
Meu terror de presenciar
cresce, cresce sem medida.
 
Por isso dorme, menino,
fecha esses olhos enormes
ao desgosto e ao perigo
de tudo quanto é visível.
e eu te faço este acalanto
de nítido desconsolo
para que, acima de tudo,
teus olhos não fiquem abertos
e me perguntem, fatais,
em sua inocência sem tempo,
por que afinal te embalei
com o peso do que sei.
 
 
 
 
LIMIAR
 
Nunca direi a palavra exata,
mas meus lábios se tingirão
do ouro do esforço, aludindo
ao que não pôde ser dito:
fauna e flora de outros mares,
as cidades do Oriente,
os umbrais do Eldorado.
Nunca direi o que sou.
 
Vejo os olhares dos mortos
que se explicam ao redor
loquazes,  querendo respostas,
pedindo o nexo antigo,
reivindicando o Dia.
Minha saudade: o humano,
Meu estandarte: a ironia.
 
Nunca direi o que importa,
o que de fato incomoda,
a pérola inquieta, vibrátil,
que, aflita, só se entremostra
É o quanto posso: roçar
o indescritível, sorrir
um sorriso meio exausto
ao pobre triunfo obtido,
sugerir a amplidão
do inconquistado, dançar
com pés ávidos de terra
uma dança já sem crença
para que chuva se faça.
 
Ignoto, vou descendo,
elevando-me  aos abismos,
desventrando a terra imunda
que encobre a taça do Graal.
E os que ficam no mundo
da contenção, disputando
um lugar entre os defuntos,
não sabem que luz promete
a cegueira do meu mal.
 
 
 
 
TRÂNSFUGA
 
Desertei do vale das ossadas,
subi aos montes, depus as facas
e aqui não tenho  mais que alma,
se assim se chama esta forma intacta
com que se cumpre a missão da perda.
 
Venceu-se a guerra? Grotescos
são os heróis da planície,
gastando o tesouro do sangue
pela troca de fantasmas –
sai tirano, entra tirano,
a História é fértil cansaço.
 
 
E uma aversão às crenças,
ao peso vão dos discursos,
à opulência do engano,
cresce e se muda em humor.
Nada me falta. Houvesse
um só consolo, uma pena,
eu diria não à farsa,
com minha certeza de cacto,
com minha ironia drenada
de toda antiga ilusão.
 
Desertei para o deserto
que trago em mim e é imune
às simulações de chuva,
com que os homens se iludem,
se ungem e se distraem.
 
Diz-se que o deserto é fácil,
diz-se que é covarde o sopro
da flauta do eremita.
E eu respondo com nada
que nada me atrevo a ser,
menos que nada, nada
que se mova neste vácuo,
suprimindo o Mal no átomo.
E vou guardar partituras,
esquecer o impossível
que fui, fomos, sou e somos
num exílio além de mapas
apoiado numa fímbria ,
a mais tímida, mais ínfima,
dos estertores de mim.
 
 
 
ARRULHO
 
Rumor de asas quando a noite é mais alta e passa lá fora um vento antigo, o visitante indiferente das ruínas de todos os impérios, o emissário do perdão negligente dos deuses, o segredo móvel do Tempo. Asas. É um ruflar surdo, suave, oculto.
Como se o telhado contivesse um sótão celeste que abrigasse pombos misteriosos, o arrulho remoto. Como se a sala prosaica fosse templo e ele sacerdote de alguma religião por inventar, misto de adoração do vento, comunhão com a noite, evocação da infância dos homens, supremacia do sono e ritualística submissão à lua.
Feliz? O que ele sabe de estar feliz? Não saber o que sente o preenche até o infinito. Seu peito nu é também peito de pombo, seu encolhimento no tapete é o encolhimento do pássaro, olhinhos de sono, crista tombada, conforto de asas fechadas.
Canta um acalanto sem tempo, acompanhado pelo vento que lá fora enrola, amoroso, as grandes árvores, e limpa incessantemente o ar, polindo as estrelas e tornando a lua mais branca. A beatitude de não ser nada. Seda entorpecente das horas mortas. Escombros macios. Os pássaros, todos, têm sono muito leve e pedem para que o silêncio seja maior – a mudez ainda mais muda torna a hora mais repleta.
A sala é o centro da noite, para ela convergem as brisas alheias a pontos cardeais. O tapete barato é tapete voador, o teto humilde é cúpula oriental, o travesseiro é forrado das penas dos pombos sobrenaturais e no sótão celeste o arrulho prossegue.
Uma gota de orvalho pinga sobre sua testa, deixando nela cravada uma estrela que é distinção e estigma. Adormece.
 
 
 

 

RETORNADO
 
E foram muitas ruas, outras pedras,
lâmpadas na névoa,  sinos obscuros,
e os trilhos foram duros, como foram!
e os olhos foram outros, muito frios,
frio de relentos outros, outros ventos
e, vindo desses outros, cá me encontro,
ou eu ou outro, ante o mistério
que nunca se emenda ou se desvenda
 
Quem sou agora? um vasto ontem
que viajou no tempo, sem descanso,
e padeceu num extenso trem insone,
buscou calor em achas que eram gelo,
achou bolor precoce nos modelos,
traiu-se,  impenitente, devotou-se
a estátuas dissolvidas em vinagre
e deuses incapazes de milagre
 
 
Proibido de lembrar, de que adianta?
o pródigo que chega, o sôfrego que sonha
só quer um colo, ainda que de sombra.
Mas nem porta ou ninguém, a noite
perfeita para enterro em terra hostil.
O falho, o nada, o oco, o alheio,
um chão onde se traça outra casa.
Por onde andaram anjos só tapumes
e um outdoor de imóvel à venda contra a lua.
 
E teu lugar no mundo
é o olho nu da rua.
 
 
Poemas de “Florir no Escuro ” (Penalux, 2016).
Ilustrações: Paul Klee
 
 
 
 
Chico Lopes (Francisco Carlos Lopes) é escritor, pintor, tradutor e cinéfilo. Reside em Poços de Caldas, MG Aos 66 anos, vem publicando seus livros, de diversos gêneros, regularmente, desde 2000. Foram três livros de contos, dois romances, dois livros de ensaios, dois de poesia, um de memórias, um de crônicas, afora 36 traduções de ficção em língua inglesa para editoras como Rocco, Geração, Ediouro, Faro e outras. Seu primeiro romance, O estranho no corredor, recebeu um Jabuti em 2012. Seu livro de poesia Caderno provinciano foi finalista do Portugal – Telecom em 2014. Florir no escuro foi seu segundo livro de poesia. Tem livro de contos inédito a ser publicado em 2019.
 













				

Respostas de 2

  1. Florir é meu segundo livro de poesia, depois de Caderno provinciano. Sonho com uma segunda edição um dia, pois a primeira se extinguiu. Por enquanto, agradeço muito a teus esforços, Jandira, por manter esse livro bem vivo. Abrações.

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