6 poemas de “O Lume e a Fábula” de Rosa Maria Mano

 


O PARTO

 

Havia, na espessura da noite,

um jarro parindo o rio.

E o rio havia tragado

todas as lonjuras, as horas,

o tempo que pilotava um remo.

Havia, na tristeza por amanhecer,

uma muralha de hibiscos-albatrozes,

descobridores de peixes cegos

que contam estórias de sereias.

 

Havia o transbordo em busca do delta.

A alma que comia as próprias raízes,

pássaros desbotados picando as margens.

Famintos, a água e o tempo numa cópula

que fervia antes do sexo, no nascedouro,

onde florescem as primeiras gotas,

o inaugural instante que fermenta o vinho.


 

A HEMORRAGIA

 

A palavra fala ao cemitério dos barcos.

Cega e inútil, desdentada e lenta.

Soa estrangeira aos ouvidos das meninas.

Castra o futuro dos meninos.

Onde a palavra que cava sua própria fenda-esconderijo?

O pulso da Terra acelera serpentes nobres,

aviva as lavas, mescla estrelas e lodo.

Pela palavra, sangram os pulsos em alto mar.

 

Há um corvo em cada ancoradouro

e uma canção de exílio presa ao remo.

Desce a lua tecendo um casulo que guarde os mortos.

E a palavra emudece na esterilidade dos altares.



O LUME E A FÁBULA

 

O lume que clareia a fábula

onde falam minha língua

os unicórnios de pescoço dourado,

aquece o rasgo, enfeita a fala.

 

Quisera ser etérea,

além de farta

– esta que é pouca.

Rígida, a nuca por onde corre

a seiva da herança,

e brotam os ipês

e as palavras abertas

ao aparato dos linhos

e das pérolas.


 

A FIBRA

 

Inventamos as voltas,

os surtos, os peixes de gelo.

Saímos da ostra antes da completude.

E seguimos, deixando farpas,

arabescos, cítaras cansadas.

Inventamos a vida, subimos escadas

para lugar nenhum,

para tempo algum.

Gastamos o ventre

no exercício do amor,

na fecundidade breve,

nas pálidas palmas

de homens sempre bons.

Sempre maus.

Silenciamos a noite dentro da garganta,

na solidão da lâmina,

da língua, do visgo do orgasmo.

 

Sinto o perfume das flores

famintas de saliva.

Sinto o negrume da fibra

quase rompendo… quase.

Da meninice no espelho,

da morte, toda, por dentro.

Percebo a carne esgarçada,

o sangue fluindo azul e irrompendo

em cardumes desnorteados.

Aguaceiros e secas, ciclos,

vértices, vértebras…

o corte imortal na haste da orquídea…

tudo me suporta na roda da Vida.

Me invadem os cheiros,

os modos, os gozos.

Mordem os gritos, as gemas do sexo.

Me açoitam os dedos de poeta invencível.



O CAIS

 

Para Hilda Hilst

 

E quando abrimos os olhos

e olhamos pra dentro…

e encontramos aquele peixe de malva

de que você fala quando escorre

e se dá conta de que vaza toda a fervura…

o brilho fica pequeno, no avesso.

A espada corta o próprio gume,

saliva um gosto de sangue vivo.

Dormentes, papilas e palato, a garganta.

A boca pede galáxias, sonha nebulosas.

Mas o que sobrevive é o peixe doce,

guardando nos olhos o destino dos barcos

e a agonia do cais.


 

O OCO

 

Com a saliva crispada,

incendiada e pronta,

aprendo o idioma dos corvos,

das serpentes e unicórnios,

enquanto desce a névoa

e o Tempo cria melros

e sabiás libertários.

 

Azul é a forma da noite.

Brancura trava seu gosto

no fundo perfumado e venenoso.

Língua de fogo lambe o dorso noturno,

passeia por luas e águas,

por lugares imprecisos.

 

Saibam os ocos da noite

que mastigo alvoradas,

respiro vapores ácidos

e crio flores de aço.



Ilustrações: Ben Gossens


 

ROSA MARIA MANONascida em São Paulo, onde vivi até os quarenta e um anos, com breve intervalo de cinco anos de residência na cidade do Rio de Janeiro, vivendo hoje à beira-mar, na cidade de Rio das Ostras, Rio de Janeiro. Curso de Letras interrompido no 4º período, São Paulo, atualmente, licencianda em História pela Universidade Estácio de Sá.

Atividades como escritora:

A primeira publicação, em São Paulo, uma coletânea de poemas sob o título Fruto Mulher, do qual participaram Mara Magaña, Maria Elizabeth Cândio, Maitê do Prado, entre outras.

Em 1983, Xamã, primeiro livro de poesias, individual. Com capa de Elifas Andreato e prefácio de Antonio Houaiss. Participação na coleção Passe Livre, da Cia. Ed. Nacional, com o título Três Marias e um Cometa. Desta coleção participaram nomes como Pedro Bloch, Helena Silveira, Josué Guimarães, Fausto Wolff, Moacir Scliar, entre outros. O Gato, Conto , 1998, D.O. Leitura, São Paulo. Coletânea Prêmio SESC de Poesia, 2000, Editado pelo SESC, Rio de Janeiro. Vento na Saia, poesia, 2015, eBook Amazon/Kindle. Manuscritos de Areia, 2017, poesia, pela Coleção Marianas, Ed. Marianas Edições/Bolsa Livro, Curitiba. Lábios-Mariposa, poesia, 2017,Singularidade Editora, Curitiba. Conexão IV – Feira do Poeta, Coletânea de poemas, 2018, Nogue Editora, Curitiba. Coletânea II Conexões Atlânticas Brasil-Portugal, poesia, 2018, julho, Lisboa, Editora In-Finita, Lisboa. Antologia Comemorativa Dia Internacional da Mulher, Mulherio das Letras Portugal, coletânea de poemas, 2019, Editora In-Finita, Lisboa.

Participações

Premiada no Concurso de Poesia do SESC, Rio de Janeiro, 1999, tendo A Lua Negra em primeiro lugar na fase municipal (Teresópolis) e segundo na premiação final, na cidade do Rio de Janeiro. Ainda, segundo lugar em Teresópolis com Re(s)cendência, no mesmo concurso.

Vencedora do I Concurso de Escrita Criativa, nas três categorias, Editora LiberUm, 2016

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