7 poemas de “Não há dezembro nesse breu” de Alexandre Gaioto

 

Ilustração: Gustavo Boggia



nascimento

 

não nasci das ondas do mar não nasci do sopro da brisa

este fogo que bombeia minhas veias

tem outro nascimento em local ignorado

em dia desconhecido

o calor me tomou nos braços muito cedo

(meus dedos cheirando pólvora nasceram antes de mim)

acendendo tochas na fogueira do verbo

entoando assustadoras cantigas de ninar

não nasci do sopro da brisa não nasci das ondas do mar


contradições

 

você escapa sem remorsos

nas fugas da palavra e do  peito 

está aqui mas nem sempre 

não deveria não

deveria sim ser assim

coleciona centenas de contradições

exibindo-as em temporadas no soturno museu de seu sótão

paredes que despertam risos do único visitante

e velam o sono dos guardas inúteis responsáveis pela

                                                         [segurança do acervo

vozes

(há quantas eternidades?)

se engalfinham com ânsia nas tuas gengivas

(é possível no museu ouvir excertos desses áudios nas

                        [instalações que ocupam as salas 17 a 89)

vozes ressoam enquanto você rói o que te sobra dos dedos

(você já roeu todo o seu passado em contradições)

atordoado

dispara palavras sem remorsos

e se ninguém se ofende

e se ninguém se opõe

enfurecido

sangra

e declara guerra a si mesmo

coquetel

 

tenho poetas vivos nas minhas paredes

tossindo tuberculoses épicas sobre batalhas perdidas 

quem

(se eu encontrasse)

na legião de mutilados me impediria?

 

as portas do comércio foram fechadas

as entradas de prédios garagens estão protegidas

ouço estrondos de véspera de ano-novo

mas não há dezembro neste breu

e as vozes berradas não são de festas nem de alegria

 

tenho justificativas derramadas no lençol 

sotaques refugiados nas sarjetas

meu coração é uma garrafa de coca-cola 

riscando

candentemente

o céu esfumaçado

devastando em gasolina e caos

o que houver abaixo ao lado


fogo pálido

 

tenho ombros largos e nenhum discípulo

derrubo o sangue de mártires sobre os precipícios

ignoro os mitos os ritos

deitado na relva como se fosse possível

prorrogar a vida em meio aos besouros

aos poucos muralha ruindo em lama

à noite as nuvens urrando em desconhecidos idiomas

minha alma não se agarra saudades do passado

os gritos neste fogo

por essência pálido

queimam conscientes

de que nunca haverá algo 

como amanhã


chamados       escolhidos

 

anatomistas escalpelam os cadáveres dos escolhidos 

lançam luz sobre os ossos

músculos veias esôfagos artérias 

observam

argumentam durante horas 

e admitem

por fim 

indignados

que não há qualquer diferença 

entre os cadáveres dos chamados


nel mezzo del camin         

 

estes holerites que me sangram

este chão que me repele sem justificativas 

estas brisas que me incendeiam à beira-mar 

esta algazarra que me vela

este governo que nunca reconheci

 

esta lareira que envelhece os homens 

este jardim que apodrece ao meio-dia

esta quarentena que se arrasta há mil noites 

estes assassinos que me arrancam bocejos 

esta nuvem que desaba dizendo não

 

são cortes profundos 

onde esfrego sal

para que seus dedos nunca se percam 

nas cordilheiras destas cicatrizes

 

são labirintos claustrofóbicos 

em desertos de areias venenosas

que meus pés prosseguem determinados 

enquanto me aproximo de ti


a vida  íntima  das  joias

 

a piscina aos domingos 

as tardes de equitação 

as rodadas de gin

nada disso é ruim 

claro que não

esta rotina burguesa 

compulsivos risos histéricos 

vida íntima das joias

o sobe e desce do dólar

as detalhadas discussões dos sapatos 

vestidos com estranhos nomes estrangeiros

o fogo da infidelidade de não sei qual atriz 

são pregos que posso suportar

se não te irritarem é claro

porque ceifam quem quer que seja com sangue 

as foices nascidas dos meus lábios


Link para download de Não há dezembro nesse breu, livro vencedor (2º lugar) do Prêmio Biblioteca Digital 2020 da Biblioteca Pública do Paraná:

https://www.bpp.pr.gov.br/sites/biblioteca/arquivos_restritos/files/documento/2020-12/2_nao_ha_dezembro_neste_breu.pdf

 


Alexandre Gaioto é formado em Jornalismo (Unicesumar) e Letras (Uem) e mestre em Estudos Literários (Uem). Atua como jornalista e já colaborou com o Correio BrazilienseJornal do BrasilZero HoraGazeta do PovoO Estado do ParanáFolha de LondrinaMetro, Cândido e com as revistas Cult e Helena.  Participa da obra 101 Poetas Paranaenses — Antologia de Escritas Poéticas do Século XIX ao XXI, editada pelo selo Biblioteca Paraná.

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