(im)permanência
meu corpo, a minha voz
meus tropeços, tudo em mim
será até quando,
um somar anuários
– de carne e osso
sou sujeito a durar pouco
(o que vinga a existência,
acesso ao infinito, é pedra:
em silêncio impondo sua forma,
não murcha sob – ou sem – a água)
dos devires
nada é.
tudo está.
o corpo que habito,
as chagas, as árvores,
as fachadas das casas,
tudo está.
o corpo que habito,
as chagas, as árvores,
as fachadas das casas,
das igrejas,
os lençóis sujos
os lençóis sujos
dos puteiros,
a saliva dos monges,
as línguas bifurcadas
a saliva dos monges,
as línguas bifurcadas
das cobras,
dos seres vivos
dos seres vivos
à matéria inorgânica,
tudo denuncia
tudo denuncia
a passagem do tempo:
existir é transmutar.
existir é transmutar.
gataria
no vão daquela hora
em que a noite desaba
sobre o dia enegrecido
resta um outro segundo
para o tempo do mundo
guardar todos vocês
noutra madrugada
no meio do nada
pelas ruas vazias
encharcadas de sereno
sobre alguns gramados
em todos os telhados
um deles é branco
outro é preto
todos pardos.
azulcinação
pelos céus
pelos oceanos
água-viva da lua
cirurgião-patela
(Dory a nadar)
pinguim-fada
gaio e garça
ararinha: azul
em extinção
que também voa
Yves Klein (cor
patenteada):
1001 balões
de gás hélio
no céu de Paris
e antropometria
– azul calcinha sem
pareidolia
assisto ao final desta manhã:
sob o mesmo céu
os mesmos galhos
dessas mesmas árvores
balançam as mesmas folhas
(presas à vida)
e enquanto um velho
que fala ao telefone
carregando rugas
e sacolas
nas mãos
vai sem pressa
sei lá para onde
(uma cara de:
“Ivone, vou me atrasar
para o almoço”), penso:
nesta cidade do Sul
da América do Sul,
onde o velho e eu
dividimos o mesmo céu,
há um cavalo gigante
sobre as nossas cabeças
– sim, sou desses
que veem desenhos nas nuvens.
antimatéria
antes de tudo, escrevo.
do contrário, apenas rabiscaria
papéis em um escritório.
contaria cédulas e moedas
em um banco.
ou trabalharia em uma repartição pública.
chegaria em casa às vinte horas,
faria a janta e assistiria
à novela,
a um filme ou ao jogo de futebol.
depois, sem pensar
em nada de mais,
sem chance para as lucubrações,
apenas esvaziaria da mente
o longo dia,
números, contas, asfaltos, obrigações.
veria a cama,
que seria somente uma cama,
fecharia os olhos e dormiria.
no outro dia, calçaria os sapatos,
escovaria o cabelo, os dentes,
tomaria o café da manhã
lendo o jornal,
que seria somente um jornal,
e voltaria ao local de trabalho,
talvez depois de brigar
com o relógio,
talvez pontualmente.
viveria assim, burocraticamente.
e enchendo-me de cotidiano,
até o limite onde eu transbordaria,
haveria o risco de em mim
ainda caber um novo hábito:
entre o céu e a terra,
enxergar apenas o que é palpável.
rumo
não bordo com lantejoulas
as pontas dos meus pés
não penduro constelações
nas minhas extremidades
para continuar a viagem
nesta esfera rutilante
(rotunda a girar)
sob minha carne fraca
não bebo da água
de um deus do céu
nem apascento demônios
à luz dos raios das manhãs
só carrego mais ao fundo
a poeira das sujeiras
dos submundos das bagagens.
as pontas dos meus pés
não penduro constelações
nas minhas extremidades
para continuar a viagem
nesta esfera rutilante
(rotunda a girar)
sob minha carne fraca
não bebo da água
de um deus do céu
nem apascento demônios
à luz dos raios das manhãs
só carrego mais ao fundo
a poeira das sujeiras
dos submundos das bagagens.
Ulisses de Carvalho: nasci em Torres (RS), há muito tempo que sinto a necessidade cíclica e ao mesmo tempo infinda de escrever, sobretudo poemas, alguns dos meus poemas já foram publicados em jornais e revistas.
Respostas de 9
Admiro seu trabalho, incondicionalmente, Ulisses… todos os seus escritos são excelentes. "Gataria", com muita dificuldade pra selecionar o preferido dessa postagem me ganhou!
Voltarei para conhecer mais do espaço literário.
Abraços em todos os envolvidos!
Feliz 2019
Mais um aqui que admira o Ulisses e seus escritos. Ficou muito bom! Já abre com um dos poemas que mais gosto. É uma boa seleção "dentre tantos"! Abraços.
Gosto da poesia do Ulisses e estes poemas não fogem à regra.
Parabéns ao autor e à escolha que fizeram.
Um abraço.
Ah, finalmente, tenho espaço para comentar teus poemas, Ulisses! Conservadora, mas reivindicativa -rs.
Jandira, acho que você fez mto bem em publicar em seu blog os poemas desse "minino" -rs. Já comentei um seu, tb, "Sinas", creio. Espero, gostaria de uma resposta sua, tá?
Já li e reli os sete poemas, mas alguns não os entendo mto bem. Escrita de poeta a sério, verdadeiro, quem é que entende -rs? Gostei, particularmente, do "antimatéria", que a gente percebe que o Ulisses quer é escrever e o resto k se dane (ele, aqui, poria, outro verbo -rs). O "pareidolia" é um poema um tanto "confuso", mas ele ouve a conversa do velho e estão ambos no mesmo tempo e debaixo do mesmo firmamento. E depois, ele afirma que é desses k veem "coisas" desenhos nas nuvens. Tenho k lhe explicar, que as nuvens estão saturadas de vapor de água e k vai chover, decerto, mas poeta, como ele é, até imagina outras coisas.
Gostei mto, Ulisses! E como ele gosta de mimos-rs! Mas quem não gosta?
Beijos pra você e para nossa amiga Jandira. Bom final de semana e HAPPY NEW YEAR!
É o o Ulisses tem fãs..rs, um bom poeta sem dúvida!
Os poemas são muito bons, gosto especialmente de "(im)permanência", "dos devires", "gataria", "pareidolia" e "rumo". A interpretação que fazemos de um poema é algo bem subjetivo, mas um poema como "pareidolia", por exemplo, além de bonito é bastante simples, o que me faz gostar ainda mais. "azulcinação" (ótimo título) já é mais hermético, mas igualmente interessante. "antimatéria" eu já havia lido em outro blog e gostei bastante, é exatamente isso, escrever antes de tudo. Bela seleção.
Trini, Sandra, Fábio, Jaime, Céu e Maria Beatriz, muito obrigado, que satisfação poder ler essas palavras todas! E obrigado, Jandira, por incluir meus poemas aqui neste espaço tão cheio de valioso conteúdo. Abraço para todos!
Ulisses, qué bueno que veas formas en las nubes, veas más allá de lo palpable y que escribas. Leo y releo cada uno de tus poemas, en parte por el idioma, pero sobre todo porque me gusta la profundidad de tus reflexiones, cómo ves más allá de lo aparente y cómo los conviertes en preciosos poemas.
Gracias por guiarme hasta aquí
Apertas e bicos