7 poemas de Ulisses de Carvalho

(im)permanência


meu corpo, a minha voz
meus tropeços, tudo em mim
será até quando,
um somar anuários
– de carne e osso
sou sujeito a durar pouco
(o que vinga a existência,
acesso ao infinito, é pedra:
em silêncio impondo sua forma,
não murcha sob – ou sem – a água)


dos devires

nada é.
tudo está.
o corpo que habito,
as chagas, as árvores,
as fachadas das casas,
das igrejas,
os lençóis sujos
dos puteiros,
a saliva dos monges,
as línguas bifurcadas
das cobras,
dos seres vivos
à matéria inorgânica,
tudo denuncia
a passagem do tempo:
existir é transmutar.


gataria

no vão daquela hora
em que a noite desaba
sobre o dia enegrecido
resta um outro segundo
para o tempo do mundo
guardar todos vocês
noutra madrugada
no meio do nada
pelas ruas vazias
encharcadas de sereno
sobre alguns gramados
em todos os telhados
um deles é branco
outro é preto
todos pardos.



azulcinação

pelos céus
pelos oceanos
água-viva da lua
cirurgião-patela
(Dory a nadar)
pinguim-fada
gaio e garça
ararinha: azul
em extinção
que também voa

Yves Klein (cor
patenteada):
1001 balões
de gás hélio
no céu de Paris
e antropometria
– azul calcinha sem


pareidolia

assisto ao final desta manhã:
sob o mesmo céu
os mesmos galhos
dessas mesmas árvores
balançam as mesmas folhas
(presas à vida)
e enquanto um velho
que fala ao telefone
carregando rugas
e sacolas
nas mãos
vai sem pressa
sei lá para onde
(uma cara de:
“Ivone, vou me atrasar
para o almoço”), penso:
nesta cidade do Sul
da América do Sul,
onde o velho e eu
dividimos o mesmo céu,
há um cavalo gigante
sobre as nossas cabeças
– sim, sou desses
que veem desenhos nas nuvens.



antimatéria

antes de tudo, escrevo.
do contrário, apenas rabiscaria
papéis em um escritório.
contaria cédulas e moedas
em um banco.
ou trabalharia em uma repartição pública.
chegaria em casa às vinte horas,
faria a janta e assistiria
à novela,
a um filme ou ao jogo de futebol.
depois, sem pensar
em nada de mais,
sem chance para as lucubrações,
apenas esvaziaria da mente
o longo dia,
números, contas, asfaltos, obrigações.
veria a cama,
que seria somente uma cama,
fecharia os olhos e dormiria.
no outro dia, calçaria os sapatos,
escovaria o cabelo, os dentes,
tomaria o café da manhã
lendo o jornal,
que seria somente um jornal,
e voltaria ao local de trabalho,
talvez depois de brigar
com o relógio,
talvez pontualmente.
viveria assim, burocraticamente.
e enchendo-me de cotidiano,
até o limite onde eu transbordaria,
haveria o risco de em mim
ainda caber um novo hábito:
entre o céu e a terra,
enxergar apenas o que é palpável.


rumo

não bordo com lantejoulas
as pontas dos meus pés
não penduro constelações
nas minhas extremidades
para continuar a viagem
nesta esfera rutilante
(rotunda a girar)
sob minha carne fraca
não bebo da água
de um deus do céu
nem apascento demônios
à luz dos raios das manhãs
só carrego mais ao fundo
a poeira das sujeiras
dos submundos das bagagens.




Ulisses de Carvalho: nasci em Torres (RS), há muito tempo que sinto a necessidade cíclica e ao mesmo tempo infinda de escrever, sobretudo poemas, alguns dos meus poemas já foram publicados em jornais e revistas. 
 

Respostas de 9

  1. Admiro seu trabalho, incondicionalmente, Ulisses… todos os seus escritos são excelentes. "Gataria", com muita dificuldade pra selecionar o preferido dessa postagem me ganhou!
    Voltarei para conhecer mais do espaço literário.
    Abraços em todos os envolvidos!

  2. Ah, finalmente, tenho espaço para comentar teus poemas, Ulisses! Conservadora, mas reivindicativa -rs.

    Jandira, acho que você fez mto bem em publicar em seu blog os poemas desse "minino" -rs. Já comentei um seu, tb, "Sinas", creio. Espero, gostaria de uma resposta sua, tá?

    Já li e reli os sete poemas, mas alguns não os entendo mto bem. Escrita de poeta a sério, verdadeiro, quem é que entende -rs? Gostei, particularmente, do "antimatéria", que a gente percebe que o Ulisses quer é escrever e o resto k se dane (ele, aqui, poria, outro verbo -rs). O "pareidolia" é um poema um tanto "confuso", mas ele ouve a conversa do velho e estão ambos no mesmo tempo e debaixo do mesmo firmamento. E depois, ele afirma que é desses k veem "coisas" desenhos nas nuvens. Tenho k lhe explicar, que as nuvens estão saturadas de vapor de água e k vai chover, decerto, mas poeta, como ele é, até imagina outras coisas.

    Gostei mto, Ulisses! E como ele gosta de mimos-rs! Mas quem não gosta?

    Beijos pra você e para nossa amiga Jandira. Bom final de semana e HAPPY NEW YEAR!

  3. Os poemas são muito bons, gosto especialmente de "(im)permanência", "dos devires", "gataria", "pareidolia" e "rumo". A interpretação que fazemos de um poema é algo bem subjetivo, mas um poema como "pareidolia", por exemplo, além de bonito é bastante simples, o que me faz gostar ainda mais. "azulcinação" (ótimo título) já é mais hermético, mas igualmente interessante. "antimatéria" eu já havia lido em outro blog e gostei bastante, é exatamente isso, escrever antes de tudo. Bela seleção.

  4. Trini, Sandra, Fábio, Jaime, Céu e Maria Beatriz, muito obrigado, que satisfação poder ler essas palavras todas! E obrigado, Jandira, por incluir meus poemas aqui neste espaço tão cheio de valioso conteúdo. Abraço para todos!

  5. Ulisses, qué bueno que veas formas en las nubes, veas más allá de lo palpable y que escribas. Leo y releo cada uno de tus poemas, en parte por el idioma, pero sobre todo porque me gusta la profundidad de tus reflexiones, cómo ves más allá de lo aparente y cómo los conviertes en preciosos poemas.

    Gracias por guiarme hasta aquí

    Apertas e bicos

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