7 poemas lusitanos de Rubenio Marcelo


NA RIA DE AVEIRO

Ave, Aveiro!…
haveria enlevo assim
em outro canto!?
 
E neste tanto de calmaria,
neste recanto
vem-me sempre em antecanto
um acalanto em coautoria
                    com a tua Ria…
 
Ah, Ria de Aveiro,
laguna em textura de dádiva,
na salinidade dos teus braços
quase esqueço que há guerra lá fora
e me deixo ser um ser
sem a cota de intervenção do cotidiano…
 
Aqui eu canto e me reencontro
 [descalço, qual um peixe original
 fiel às pedras e sargaços]
                       e em disciplina plena
embarco em um dos teus compridos moliceiros
e pressinto pulsantes ideogramas…
no âmbito dos teus canais, teus ramais
e rotas-aortas…
 
E o barco me acolhe,
acenando com elegância para o coito das águas
e traduzindo elegias, fábulas, parábolas
em símbolos-painéis e planos
moldados em pinho
e ao sabor das acrílicas inscrições…
 
Aqui, meus olhos são reticentes faróis
que buscam entender [num mesmo silêncio]
destinos de flamingos e a aquarela da paisagem…
Nesta policrômica abstração
vejo traços que transcendem cores e legendas
a bordo e a estibordo
da geometria de cada instante…
 
E assim, nestas líquidas flamas
e atento às singraduras do âmago,
sinto-me em uma grande nau viajora
[não aquela proa de sortes perdidas,
 mas esta de voga irrevogável
 e de leme em serena sintonia
 com os pássaros da minh’alma]…
 
Ah, Aveiro…
para cá, certamente eu voltaria
e voltei…
e haverei de voltar um dia
para este porto… e parto…
– aqui tem tudo a ver:
                 tudo Aveiro!
 
 

MENSAGEM…
 
O sinal foi dado,
já borbulha o verbo em trindade
no cálice místico da criação…
três elos se conectam
ante o seio-instinto de auroras,
símbolos em messes buscam intuição
[o princípio em brasão,
 heróis escudados em campos, castelos,
                                quinas, coroa e timbre]
 
guerreiros do reino português
reis e rainhas, e toda gente,
gente minha,
navegadores e outros pares
receberam o sinal:
que seus descendentes cresçam sem guerras
guiados em equilíbrio pelo espírito
e pelo sal dos destinos
ao leme invicto
além das terras e dos mares…
 
Sim… lá nas alturas de paz
na hora certa da essência
no exato pulsar do tempo
cumprir-se-á o ciclo silente
da felicidade efetivada da alma
em perfeita revelação da  existência:
quando se descobre o encoberto
anunciando seiva em lema
e emblema do destino novo e redenção…
o sinal foi dado: bendito o final
– Mensagem em gema: Portugal!
 
 
 
HERANÇA NAZARENA

daqui do farol da Nazaré
avisto no dorso azul do horizonte
           [e na brancura deslizante da paisagem]
ícones íntimos das espumas e dos ventos:
imagens brandas que lá vêm vindo
celebrando lendas do mar infindo…
 
ah, são sete pescadores nazarenos
trajados de brim
                e tarjados de brio…
– e quão nazareno é voltar do mar! 

e eles sabem muito bem do estatuto das marés,
além das linhas e anzóis
e da confidência dos sete mares
em seus ires e vires
 
sabem também
que sentadas na vasta areia da praia
guardando luas e sóis
      [alheias aos sete mistérios de netuno
       e às pranchas e picos da sétima onda]
há sete mulheres,
cada uma com sete saias
nas sete cores
       do arco-íris…
     
não sonham jamais potes de ouro
nem madrigais em contracena…
      – mas sim exercitam outro tesouro:
         o ofício de fiel herança nazarena!

Ilustração: Antonio Moreira

SER SONHADOR
(para Bernardo Soares)
                 
Nesta noite de Lisboa
aqui na rua da alfândega
reparto-me com sombras inertes
e sinto-me num tempo sem demarcações
de desvelos da inquietude…
 
mesmo sem sono
numa reprocura da alma
esqueço a solidão dos passos
nos recantos da predestinada inconsciência
e subo ao quarto de hotel…
 
[ah, sonhar em não ter sonhos
 ou entressonhar o óbvio
                  num esboço de disciplina
 não seria acordar
 nem seria sequer azulejar
 a legenda de um fragmento de vertigem
                  que sucumbe a rotina,
não seria sentir a cor e o sentido
desta vontade de escrever
como estatuto de fuga e afago]…
 
assim, desta janela do segundo andar
miro na rua um vulto absorto
que também me contempla num relance
mas disfarça e não se detém
tem pressa: quem sabe procura algo
                   além do que lhe encanta
                   bem além das sete colinas
ou simplesmente busca as luzes resistentes
da navegação dos sonhos…
 
 – e no silêncio daquela vã meditação
    dediquei-lhe este canto:
 
                      II.
Sonha, um sonho em Pessoa
antes/depois
do teu sonho fingir que não é dor…
logo um novo sonhar floresce, pois
todo ser na essência é um sonhador!
 
ante andores, estorvos e torpor,
sonha ardores nas cores de outros sóis
sonha amores rubentes qual licor    
que inebria os sentidos dos heróis…

assim, nestas correntes,
nestas pontes
de harmonias perfeitas e discretas,
sonhos e menestréis são simbiontes!…
 
 

REENCONTRAR-SE EM SAGRES
 
Na praia
uma  gaivota
tece luz nas minhas retinas…
 
E mesmo só,
transporta-me para além das falésias
                                         e dos arrecifes,
para onde sou confidente das nuvens
 e murmúrio deste atlântico sal…
 
sigo mensurando rotas
em enseadas de centelhas
que pontilham pulsos
até o encontro dos azuis…
 
e lá,
onde marquei encontro com o horizonte,
uma nau de Sagres
espera por mim…
uma nau sem sinal
e sem tripulação
mas municiada de sol…
 
desancoro-me de outros eus,
despeço-me da gaivota solitária…
e me disperso
em varandas de sol e tudo…
 
– em exercício de solitude!
 

 
O CULTO É ÀS LETRAS
(à Livraria-igreja de Santiago, de Óbidos)

Não posso avistar livraria
que já mudo a rota
perco o tal horário
ganho o itinerário
e desarmo a vista
ou afino a lista
de não fazer vista grossa
 
E nada me livra
nem me livraria
da minha livre vontade
de estar com o livro
– nisso sou um livro aberto
num destino certo
do tempo que dança nas minhas retinas…
 
[e são tantas
 as livrarias que conheci…
                   sim… tantas… enfim]
 
mas quanta emoção
eu senti ali… no final da rua Direita
perante muralhas e monumentos,
um destino no meu destino de longos navegares
uma fortaleza de ares de mui primazia
num sacro ambiente
completando a incompletude dos meus passos singelos
                   um templo-livraria…
e eu em sintonia
com desígnios da existência,
respirando as coisas inexplicáveis da essência,
absorvendo fôlego de vida
                   e leveza espiritual…
 
Lá, eu vi Saramago
e vi Pessoa
e vi Florbela e tantos mais…
 
ah, e também vi Clarice,
que me lembrou sorrindo:
‘Deus é uma coisa que se respira’.
 
 
 
AMIGO DAS GAIVOTAS
 
ah, estas amigas gaivotas
sempre adornando a partitura
da minhas canções andarilhas
e trazendo-me oferendas confidentes
e os corais do recomeço
após a súplica da solitude…
 
e no azul do momento
em espelhos plantados nas minhas hesitações
lembram-me que também sou do mar
que sou celo, sou elo e prelúdio de sóis…
 
e ampliam meu olhar
no desafio das ondas e nos mistérios do Forte
e me levam nas asas
e me guardam em brisas
   ou brasas no estio das jornadas…
 
ah, estas amigas gaivotas
[alvas velas transatlânticas
 dos instintos viajores que me habitam
                                   em invictas rotas]
norteiam o abrigo do meu ser
num acolhimento alheio à minha timidez
nas vivendas do tempo…
 
e no eco dançante dos seus voos
convidam-me em confidências
para escutar o mar e a cerimônia das águas
na íntima expectativa
que desadormece em reprocuras…
 
e me contam segredos
daqui da Nazaré… da praia do norte,
da Leiria dos meus antepassados,
do seio das raias e rias de Aveiro
ou lá do Porto de outros refúgios…
 
ah, estas gaivotas amigas
eternizam o dorso das partidas
e a morada das minhas palavras
na leve clave de ave
que harmoniza a alma!

Rubenio Marcelo é poeta escritor, compositor, ensaísta e revisor. Membro efetivo da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras (ASL), da qual é atualmente o Secretário-Geral. Autor de várias obras (livros e CDs), destacam-se nas suas publicações  mais recentes, além do CD “Parcerias”, os livros Horizontes D’Versos, Voo de Polens, Veleiros da Essência, Palavras em Plenitude (prosa e crítica cultural), Vias do Infinito Ser (poemas, pela Ed. Letra Livre, já em 2ª edição – indicado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul como leitura obrigatória para os Vestibulares 2021/2022/2023 e para o triênio do PASSE), Caminhos – 100 Poemas Escolhidos de Rubenio Marcelo e Almar – Poemas Lusitanos de Rubenio Marcelo na Ótica de Ana Bernardelli. É membro correspondente da Academia Mato-Grossense de Letras (AML). Foi Conselheiro Estadual de Cultura de Mato Grosso do Sul. É advogado inscrito na OAB-MS e reside em Campo Grande/MS.
 

Uma resposta

  1. Amo suas obras. Elas nos enriquecem . Sabedoria infinita. Cheia de luz,nuances em versos. Nos seduz, tece a alma, traz a calma. A alma seleta do poeta nós aquieta e nos embala
    Através de versos. Lindos reversos
    Amo seus versos. Carmem Viçosa

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