8 poemas de “A invenção do passado” de Ronaldo Costa Fernandes


Lembrança
 
Não me lembro do que esqueci.
O dente de leite
que caiu no café da manhã?
A estrela cadente
que não incandesceu nos meus olhos?
A água viva que matou o verão?
O abraço de madeira
no corpo florido do meu pai.
A morte se maquia;
por isso, minha mãe saía à rua falecida.
A lágrima é um colírio
que se pinga de dentro para fora.
Um colírio que não alivia.
Só não posso esquecer que sou gente.
Não quero ter uma vida de cão.
Estudei pra burro
para não ser um asno.
Tampouco quero ser floresta.
Cresço melhor à noite.
Minha fotossíntese
é uma dialética
entre a tese da treva
e a antítese do florescente mal
de respirar minha inspiração.
 
Amanhã, se alguém me chamar na rua,
direi que sou passante.
E os passantes não têm nome.
Passantes são animais pequenos
que não têm nome como as pedras.
Só as pedras gigantes têm nome.
Sou muito pequeno
para um monte de coisas.
 
 
Números
 
Os números não me esquecem.
O zero,
diferente de um que não tem gordura,
quer se passar por invisível.
Por isso, sua forma oca.
A boca aberta para o tempo.
A natureza de furo
e vazio,
um oh de espanto
ou um bocejo do tempo
que não passa.
 
O pior dos números
não é me puxar pela memória.
O pior dos números 
é inverter a aritmética,
tornar o que é um dois
e o que é dois um,
logo dois braços pouco somam,
duas pernas diminuem
o ritmo dos metros.
O trapézio dos olhos
lança o corpo móbile da gravidade.
 
  
Vulcão
 
Tudo o que incinera por dentro me é humano.
Durante anos,
diagnostiquei meu magma.
Estudei
as formações rochosas do espírito.
Ginasiei a geologia das fúrias.
Mas, descobri Vasari
e entendi como funcionam os vulcões.
Primeiro,
o vulcão é uma fábrica.
Nela, ofende o ferro quente
um gigante musculoso.
Um forno
assa o pão
com o fermento das perguntas.
Depois, há um fole
para inflamar os nervos vermelhos.
A lenha nunca é verde
porque aqui o verde
é uma forma de coisa madura.
 
Na forja, o fogo operário
é torneado pelo vento
das irrupções nervosas.
Minhas lições de vulcão
me tornaram um homem deliquescente,
fugitivo de lavas,
que não limpam
o lençol alvo
das erupções adormecidas.
 
 
A inquietude
  
A inquietude se hospeda
em quartos separados entre ímpares
que não tenham pares.
Hospedo vários sentimentos
na mesma habitação
registrada no livro das horas.
 
O check-in começa
logo ao acordar
e não dou baixa
de ser meu hospedeiro.
 
O serviço de quarto
não atende à voracidade
da imaginação passageira.
 
Há uma piscina
onde nadam desejos submarinos
em meio ao cômodo.
 
De vez em quando,
a banheira submerge
os incômodos do not disturb.
 
Todos têm o mesmo abajur lilás
e o leito ambulatório
do hospital dos intermitentes.
 
Os mais jovens saem mais secos
pelos líquidos que deixaram impressos
na folha de algodão.
 
Famílias se burburinham
na farândola da vacância.
E homens de negócio
investem seu tempo
no memorial das horas tortas.
 
Todos os corredores são lentos
e enganam os sentidos.
 

Subidas e descidas

Haverá subidas
que não são idas,
e, sendo volta,
deverão chamar-se
subvoltas.
 
Haverá descida
que não é ida
e, sendo volta,
deverá chamar-se
desvolta.
 
Minha casa
fica numa desvolta
ao fim da tarde.
O trabalho,
que é íngreme
– todos os trabalhos são íngremes –,
fica, depois do almoço,
numa subvolta.
 
Então me pergunto:
A morte é uma subvolta
– aos céus, quem sabe –
ou uma desvolta
– aos infernos,
de onde nunca saímos?
 
  
Mãos
 
Que todo aperto
seja apenas de mão.
Só gosto de dar as mãos
para quem sabe dos apertos.
As palavras
são mais pesadas que o ar.
Conto nos dedos
quem pode me dar a mão.
Tenho a mão fechada,
as unhas encravadas no tempo.
 
 
Quedas
 
As cortinas são neblinas
em forma de pano.
Em época de abismo,
me lançarei nas cataratas
que desabam
a retina da certeza.
Tento assoviar um zero.
 
 
A tarde
 
A tarde está sempre atrasada.
Em sua idade madura,
os corpos já estão corruptos
de matéria ordinária.
Em sua infância,
é apenas um torpor,
digestão do tempo.
 
O coveiro que lhe dá
a pá de cal negro
a silencia com constrangimento.
Ando com uma tarde
no bolso para eventuais encontros.
 
Na noite, o sol nasce para os outros.
Fiat Light disse um Deus canadense
e nos deu a companhia
por muitos anos no século passado.
 
Para onde vai a tarde
com sua girândola laranja,
fenecendo de fragrância humana
e desespero da Ave Maria
orai por nós
e pelo monóxido carbono que nos incensa?
Todas as tardes borbulham
e serenam o calor
penitenciário do trabalho.
 
A tarde tarda,
a manhã amanhece,
a noite anoitece.
O coração arde,
a razão conhece
e o corpo tece.
 
Flaubert dizia que se sentia viúvo de sua juventude.
O olho alpino observa
o viúvo peripatético
escondendo-se nas sombras das calçadas.
As pedras portuguesas
são olhos quadrados que se pisa sem olhar.
O poente é testemunha do cônjuge
que fomos.
Um cativeiro
com suas portas abertas
se oferece a quem já se nega
a liberdade
ou o medo do cárcere ao ar livre.
Tarde e manhã: duas irmãs siamesas
ligadas pelo ventre do dia.

Ilustração: Gustavo Boggia


Ronaldo Costa Fernandes tem nove romances, nove livros de poesia, quatro de ensaios, e duas novelas. Sua estréia na literatura deu-se em 1979, com o romance João Rama, editado pela Codecri. O livro ganhou o prêmio Revelação de Autor da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte). Os romances, excetuando Retratos Falados, de 1984, editado pela Philobiblion, ganharam prêmios, entre eles, o mais importante foi o Prêmio Casa de las Américas dado a O morto solidário, publicado em espanhol em Cuba e, em português, pela editora brasileira Revan. Em 2005, publica o romance O viúvo, pela Ed. LGE. O crítico Adelton Gonçalves, no jornal português 1º de janeiro, chamou-o de “uma das primeiras obras-primas da literatura brasileira”.

Na área do ensaio, o livro O narrador do romance trabalha com teorias sobre o foco narrativo e utiliza-se de autores de diversas escolas de crítica literária que estudaram o assunto. Desde Lukács e Benjamin, passando por Brooks e Waine, até utilizar-se de conceitos de Greimas, Barthes e outros menos conhecidos como Oscar Tacca. Mas Ronaldo Costa Fernandes não se limita a utilizar-se de terminologia de críticos reconhecidos, também propõe uma análise pessoal e idiossincrática do papel do narrador na prosa de ficção.

O surgimento do autor na área da poesia deu-se em 1997, com o livro O estrangeiro, editado pela Sette Letras. Acabava de retornar de nove anos dirigindo o Centro de Estudos Brasileiros em Caracas, na Venezuela, período também em que deu aulas na Universidade Central da Venezuela, a mais importante universidade pública do país. Na Venezuela, ainda publicou a novela Notícias del Horto, pela Monte Ávila Editorial. Em 1992, sai a versão, em espanhol, de El muerto solidario, pela editora da Casa de las Américas, em Cuba.

Logo mais tarde, agora trabalhando como Coordenador da Funarte em Brasília, órgão do Ministério da Cultura, ao mesmo tempo em que dava aulas na Universidade Católica, o autor publica dois anos depois o livro Terratreme. Com ele ganhou o prêmio Bolsa Brasília de Literatura que, além de dinheiro, dava direito à publicação pela Secretaria de Cultura do Distrito Federal.

Em 2000, publica dois livros: o de poesia, Andarilho, e O imaginário da cidade. O livro de poemas é publicado pela editora 7Letras. A curiosidade dos títulos dos livros de poesia já nos dá um caminho de análise: todos trabalham com a idéia de movimentação, de inquietude, de não paralisação, de não imobilidade. A errância, o movimento contínuo, a terra que treme e não está fixa. Já O imaginário da cidade, publicado pela editora da UnB, é um livro organizado por ele e pelo ensaísta Rogério Lima. Além da organização, Ronaldo Costa Fernandes participa com um ensaio: “A cidade, o narrador, a literatura”. Em 2004, publica o livro de poemas Eterno Passageiro (ed. Varanda). Ainda no campo da poesia, edita em 2009, o livro A máquina das mãos (ed. 7Letras), ganhador do Prêmio ABL de Poesia 2010, cuja comissão julgadora foi composta pelo poeta Alberto da Costa e Silva, Afonso Arinos de Melo Franco e do poeta Lêdo Ivo. Em dezembro de 2010, sai o romance Um homem é muito pouco, pela editora Nankin.

Depois de haver trabalhado como professor, publicitário e dirigido instituições culturais, Ronaldo Costa Fernandes trabalhou por dezesseis anos (2003-2019) no Conselho Editorial do Senado Federal. Colaborou no Correio Braziliense com artigos e resenhas sobre livros e temas literários, além de participar de antologias e colaborar com artigos para revistas.

            O livro de poemas Memória dos porcos, da editora 7Letras, é lançado em 2012. Segue-se O difícil exercício das cinzas em 2014. Em 2016, a Academia Maranhense de Letras recolhe seus ensaios e os edita no volume A cidade na literatura e outros ensaios. Em 2018 sai Matadouro de vozes, poesia. Em 2019, edita os romances Vieira na ilha do Maranhão e O apetite dos mortos, respectivamente, pela 7Letras e Editora Jaguatirica. Os livros mais recentes são o romance Balaiada, de 2021, editado pela Academia Maranhense de Letras, e o volume de poesia A invenção do passado, da editora 7Letras, deste ano.

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