Confissão
Do gosto louco e aposto
de falar de mim, a dizer
tenho pouco ou quase nada:
além do ser ou não ser:
mais Caim que Abel,
mais Lúcifer que Gabriel:
Eis-me assim.
Os pelotões infernais
me acompanham sempre
pelos feios caminhos
que não escolhi, não que lembre.
E daí?
Sigo-o como quem diz:
“as flores ainda
não estão murchas”.
Amo a luz e a sombra,
Indistintamente,
e bebo-as, todas as duas
na mesma boca, que diz
lentamente amor ou perjúrio.
Sou límpido e profundo
da mesma forma que o lodo
no fundo de tudo, de todos.
Silêncio
Minha loucura é sagrada.
O vento que sopra dos becos
a conhece muito bem.
Nas latas de lixo encontram
abrigo os pensamentos impuros
de uma mente torva, sem cura.
Acostumei-me com o enxovalho.
Criado, capacho, inutilidade pública
sempre me acho à mão conveniente.
O grito que não solto,
silente,
é louco, porque busca
a saída que não há,
mesmo que brusca.
Não há rumo, só o caminho
estreito, escuro e fundo
que leva sempre ao mesmo fim.
Minha loucura é sagrada.
Por isso não a respeitam.
Não há soldo, não há lucro,
não há qualquer dignidade.
Consideram-na surda,
pois sempre a chamam
aos gritos, e as censuras
calam sua boca. Por isso
também será sempre
muda.
Temor
Abdico de tudo, em tudo, ainda mais,
para ter o descanso honesto, (uma trégua
(mesmo que mansa,) da cabeça-névoa;
e protesto pelo silêncio que arde
que não para, para não, não mais.
Os pingos da chuva, sem alardes
e doces ornamentais, já são vistos
ainda ao longe. À terra descem
como pequenas luvas de linho laço
e levam a luz pela janela. Jamais oferecem
algo mais do que forma difusa e opaca.
Já se revelam mudos, mundos de aço,
nem ariscos, nem tristes, nem ultrajes.
Talvez agora, ou hoje ainda, ou nunca,
ou no futuro áspero que se avizinha,
em trajes escuros de terríveis mortalhas,
um grão torto de lava escorra severo
e sepulte tudo, enterre o medo e a mortal
ladainha.
Cena
Num café anônimo e enfadonho
alguém toca uma chanson;
e os dedos apertam teclas
de um amor impensável
que lembra um acordeon
roufenho, triste e torto.
O instante é mosaico
absurdo de linhas anti-geométricas,
ou vitral de sons despertos;
e vozes que dentro de vozes
flutuam em traços de tinta
pela garganta onde um quadro
se pinta plano de branco
básico, na plena luz.
Entrelugar
Sou um animal impuro
vendo estrelas ao meio-dia;
As patas roçam as calçadas
e os muros e as cancelas.
Fosse vivo não sofria
o vagar lento da caminhada;
Mas morto-vivo procuro
o pranto oculto do vasto vento.
O solo seco fende o areal
onde os navios se destroçam;
mas com olhos ácidos absolvo
o canto vazio sobre o relento.
Algo ainda me prende
a todos os humanos desvairios.
Os odores são sólidos
e prenhes de sussurros gastos.
Apenas o olhar maldito ofende
qualquer curva de todos os rios;
sonho, e em sonhos gélidos
desamarro a vida, solto os lastros.
Ciclos
Nove homens caminham em círculo
sem saber do passo retornado.
Cada rastro no gelo se desfaz
em nuvem, mal pelo fogo tocado.
Mas tudo aparenta e renasce
sem ruído qualquer, simples estrídulo,
ou marca de mão ou galho quebrado.
Uma aranha lenta o fio tece
em redes, amarras, celas ou cubículos.
Um a um se perde nos quadros
lúgubres, silenciosos, da noite que desce.
Vivos, porém cessados os estímulos,
petrificam-se antes de chegar ao adro.
Apenas um renascerá da sombra,
desfazendo o frio cinzento dos ciclos.
Apenas um saberá a chave da prece
que descortinará o mistério sem quebras.
Fagia
O gosto da flor do mato
está no colorido estranho
das pétalas abertas e úmidas.
Há um suave sabor sóbrio
em cada adormecido e novo
tom, algo de florestas escondidas
e trevas. Ou de um jardim
sem dono.
Pode-se comer sem medo
as pétalas, pois algumas apenas
são mais amargas, outras
mais doces. Há centenas.
E se alguma, por descuido,
contiver algum veneno,
que se coma devagar, com
atenção e zelo.
Os membros primeiro enrijecem
um pouco, depois apresentam
tremores: mas também pendem
naturais
do talo de um corpo macabro.
Se há alguma dor amena,
logo aquece o entorpecimento,
e com ternura extrema
suporta-se a náusea, como algo
em que, afinal, não há de se ver
o desespero ridículo
do medo.
Não há transformação sublime
sem seu sofrimento natural,
um tremor, mesmo que animal e
tênue.
Desencontro
A noite já assustou o dia
com seus e(x)stertores histéricos
de dama recatada; mas ainda expõe
um tanto arredia e alada,
à primeira luz, o sexo explícito
e franco das cores fortes,
contra a suave cortina que ainda
suspende discretas estrelas,
mais e mais distantes,
do alto da colina alçada.
Foi-se. E o dia recomposto
parece alegre por uma leveza
inexistente. Já vem a realeza
do sol chapado e molhado
de suores que despe de qualquer
sensualidade e destreza
a rotina dos ruídos que o percorrem.
Na tarde, quase se encontram
os dois amantes, já dissipados
no onanismo da agitação frenética,
ou nos lânguidos e(x)stertores
do prazer incompleto.
Na triste estética do crepúsculo,
despedem-se sem demora,
vinda a hora da vida já vivida.
Ilustrações: Virginie Boutin
Leopoldo Comitti nasceu em Rio Negro – PR, em 03 de abril de 1956. Foi Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto, onde, além das atividades de ensino e pesquisa, também se dedicava formal e informalmente a oficinas de criação poética. Lá publicou Fundo Falso, seu primeiro livro de poemas. Obteve uma Bolsa de Escritores da Biblioteca Nacional, em 1999, na categoria de Poesia, com Por Mares Navegados. Foi também premiado, na mesma categoria, no IV Festival universitário de Literatura, com Jardim Inóspito. Em 2012, publicou O Menino Debaixo da Mesa (poemas), e Natureza Morta (romance). Lançou em 2014 o livro de poemas A Mordida do Cordeiro, pela Editora Patuá, em 2016 O Centro do Círculo pela Editora Kazuá, em 2017 pela editora Epigrama Coletivo Editorial o romance policial Natureza Morta e o livro-ensaio O Trapézio e A Vertigem, baseado no filme Asas do Desejo de Wim Wenders. Tem lançamento para breve de Mosaico Absurdo pela editora singularidade.