ÉRAMOS UMA VEZ
as lágrimas do gás
evaporavam nas dobras
de algum lenço embriagado
em licores de amônia
as outras choviam soltas
assim como os gendarmes
chutando liberdades
com suas botas
de sete línguas mortas
nos salvava a insolência
daquela utopia torta
que arrancava vitórias
da carne das derrotas
e nos aguava as vistas
ao velar cada insônia
voltaram os desertos
a erosão nos devora
e a aridez cegou os olhos
que não mais umedecem
ou que pouco se importam
em prantear tantas lendas
que não foram história
MAIS-VALIA
talvez seja um deserto
o que nos atravessa
e o vento logo esqueça
nossos passos na areia
somos o que nos cega
somos o que apagamos
com a mesma moeda
nos fascina a palavra
antes mesmo que a ideia
e a herança é mais-valia
mais valia perdê-la
MAÑANITAS
o aroma do café me amanhecia
e pelos cantos
da boca adormecida
rondava uma canção
desesquecida
das desafinações
corpo a pouco vencia
amarras de preguiça
e soltava alegrias
de beijos e de bolos e de pães
outros tempos talvez
fosse outra vida
os sonhos não murchavam
logo ao primeiro berro
logo ao primeiro berro
de indecentes
manchetes dos jornais
PROFECIA
era um sábio e me disse
enquanto eu celebrava
o parto do homem novo
e outras façanhas
era um sábio e me disse
como se nada:
não esquece do endereço
em que deixaste as armas
e partiu dando coices
de mula manca
derrubando transeuntes
com sua bengala
E A CONDENA É PERPÉTUA
ser gauche era comum
na minha casa
mas eu exagerava
na receita
testando na metáfora
os limites da audácia
acordava entre rimas
e adormecia no ritmo
da cantiga inventada
minha mãe me falava:
“Vai ser poeta na vida”
na minha ingenuidade
achei que aquilo fosse
desejo oculto dela
mas era uma sentença
e ainda não achei a graça
DE PASSAGEM
uma gota de orvalho
desenha na vidraça
o canal de uma lágrima
e o rosto refletido
aceita a cicatriz
e adota essa tristeza
que não é nossa nem nada
que é alheia mas não falsa
e às vezes nos assalta
numa estação de trem
no rebanho mirrado
que em torrões ressequidos
faz de conta que pasta
numa moça de luto
que amamenta um embrulho
numa gare deserta
sentada sobre a mala
a dor é passageira
e logo o vagão anda
Ilustrações: William Blake
Jorge Rein: Contista, poeta, dramaturgo e tradutor. Nascido em Montevidéu, Uruguai. Residindo em Porto Alegre/RS desde 1971. Alguns livros publicados, textos premiados e/ou encenados no Brasil e no exterior. Entre as publicações mais recentes, Grafiteiro do Avesso (poesia, Ed. Patuá) e o eBook Cartas Trocadas, em parceria/cumplicidade com a escritora e poeta Adriana Bandeira (Ed. Bestiário – disponível na Amazon). Redator de conteúdos poéticos no site infantil Canto dos Mafagafos.