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Rosto IX. O brilho…Engano da tristeza – Tere Tavares |
Tinha os olhos desgrenhados, a boca em forma de coração, um olhar quase escondido, angustiado, mas via, e intuía. Algo a impulsionava a seguir sem importar-se com o que diriam os outros, aqueles que a conheciam ou viessem a conhecê-la. Gostava de olhar-se no espelho, conferir o delineador, o batom, a tez e os cabelos, sim, aqueles cachos assemelhavam-se às uvas maduras pendidas das parreiras – transportou-se, em segundos, para o tempo em que vivera em meio aos pomares e às hortas, às ervas e relvas, conhecia as plantas medicinais, as frutas silvestres, as borboletas, os pássaros, os matagais, os murmúrios das florestas, onde havia cedros e araucárias, as estradas e as encruzilhadas, as colmeias, os bichos e seus chiados, como um inescrupuloso encontro entre amor e mais amor. Afugentou-se pelas ruas aquecidas da metrópole, agora sua paisagem era a corrida inconsumível de um dia-a-dia que jamais se adiava. E, no entanto, passava, passava, passava. E aquele breve e infindável instante em que permaneceu, como se andasse para trás, revelou-se na magia de um legado que alguém lhe havia reservado. Não perdeu a graça nem o santo nem o pranto nem o tempo. A cada tremular estrutural do seu corpo, a cada passo, assegurava-se de guardá-lo, como uma apólice a garantir-lhe alguma proteção vinda do aparente desconhecido. Como no dia em que lhe arrancaram a bolsa do braço e o celular e o relógio e o camafeu e os anéis e algumas gotas de sangue – e o corpo, a vida, não fosse o amuleto.
Tere Tavares é pintora e autora de oito livros: Flor Essência (2004), Meus Outros (2007), Entre as Águas(2011), A linguagem dos Pássaros (Editora Patuá 2014), Vozes & Recortes (Editora Penalux 2015), A licitude dos olhos (Editora Penalux 2016), Na ternura das horas (Editora Assoeste 2017), Campos Errantes (Editora Penalux, 2018). Participou de antologias, jornais e sites no Brasil e Exterior.