4 poemas de Clarissa Macedo

 
 
Faísca

Ontem havia esperança
toda a esperança do mundo.
Hoje sou um estilhaço
um catálogo de dúvidas
e desejo.

Os pássaros não voam mais
e o dia que nasce
é o luto ordinário,
grave, posto sobre a mesa.

A boca diz o que o coração fala
e a dor é antiga:
chega, se instala
abre ocos na aorta, devagar,
para o aprendizado –
                                   do enigma
                                               da sutura
                                                           da ferida
                                                                       da beleza.

Os fracassos… saúdam uns aos outros;
o que fica é o peso
a humilhação calcada nos olhos.

Digam que perdi:
que faltei às classes de empreendedorismo
e visitei às de angústia e miséria;
que não vou ao shopping
que rasguei os papéis e os comi.

Digam que perdi tudo:
a fé, o sonho, o dinheiro que não sobra

mas amo como se fosse eu o país
essa cavidade aberta
exposta, sangrando até a morte.


Terraço

Não há lugar em que eu me sinta em casa
Não há salvação.
A sirene roda alto
e o lá fora é meu tórax cheio de inverno e de vazios
:
minha mãe morta em 86
o maço de contas que me fazem
um número
o avô fugindo na mata
e os porões como almas que choram no caminho

Amei tanto que parei no meio
(o oco é um futuro sem volta
é minha humanidade depositada no meu cão)

Nosotros in USA
seríamos felizes talvez
ignorando o pano de chão no varal há trinta anos
o pó da mala
nossos parentes atravessando a rua do muro
roubando batatas direto da plantação;

e seria só um protesto tímido
a infelicidade que habita o tempo do futuro.




Conta bancária

O mundo todo
grande.
A gente largo,
pássaro, fundo.

A vida ao redor.
O caminho raso,
aço, nulo.


Amor sem capas

Esta é a pessoa que amo,
com o dedo no nariz
a calcular, remendar sonhos

É esta
que reclama;
nalguns dias acesa, noutros triste

Quem eu amo…
com a barriga por aparecer
e as costas magras, sombrias

Eu amo:
dum amor tão grande
todo cheio desse cotidiano
a semear, inundar meu desvario.


Fotografia de Clarissa Macedo: Ana Reis
Ilustração: Thien Chi



Clarissa Macedo, doutora em Literatura e Cultura, é escritora, revisora, professora e pesquisadora. Apresenta-se em eventos pelo Brasil e exterior (Cuba, Portugal, Peru, Espanha, Colômbia, Polônia). Integra coletâneas, revistas, blogs e sites. Publicou O trem vermelho que partiu das cinzas (Pedra Palavra) e Na pata do cavalo há sete abismos (Prêmio Nacional da ALB, 2014; em 2ª ed., 2017; e traduzido ao espanhol, 2017). Este ano integra o “Circuito de Autores” doArte da Palavra (SESC). Prepara novos livros. Contato: clarissamonforte@gmail.com

 

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