Eterno Passageiro/Ronaldo Costa Fernandes – Noite, pura noite e outros poemas



Noite, pura noite
 
Não há carteiros na noite.
 
Feito só de cabeça,
corpo de luz invertebrada,
o sinal de trânsito
pende gota gorda de vermelho.
As putas dão prazer automóvel.
Na numismática das janelas
o único olho aceso do prédio não pisca.
A noite não tem pés só cabeça
o travesseiro feito de vozes interiores,
fronhas inconscientes,
vigílias sonâmbulas.
Inventar a noite:
abolir sua mania de enigma,
a substância silhueta,
eliminar o hábito de sombra.
 
 
O vestido de ferro
 
Tudo teu é de ferro:
bolsa, armário e escova de dente.
Teu vestido de betume
brilha um céu de gesso e espessura.
 
Os sapatos caminham léguas de carmim.
 
As lixas de unha limam a aspereza
dos amores fugidios,
estes amores de lama e rosa,
que enferrujam na lixa do tempo.
 
Os carretéis de linha
não bordam a vida,
é de náilon tua costura do medo.
 
E, por fim, teus perfumes
amargam a beleza fescenina
de nunca atingir o clímax
ou preferir a rigidez do aroma.
 
 
O animal barbado
 
Este animal que se rasura
como quem raspa  a orelha do porco
para a feijoada de fim de semana,
este animal feroz e matutino,
como um auto-retrato,
com seus olhos 3 x 4 ,
observa a paisagem da janela
e do outro lado do vidro
está ele mesmo,
é ele a paisagem que envelhece
cada vez que a freqüenta.
Este homem ao espelho,
gilete de martírios e angústias violáceas,
barbeia seu minuto e sua morte,
exasperada e afiada servidão,
a consciência espumosa da pequena guilhotina.
 
 
Anatomia do pó
                       
I
 
Essa invisibilidade me corrompe.
A que espécie de tédio pertence o pó?
 
                        II
 
O grão do pó se materializa
em camadas de memórias abandonadas.
 
                        III
 
Pele porosa de terra.
Superfície sobre superfície.
Um bicho de duas peles.



Ronaldo Costa Fernandes ganhou, entre outros, o Prêmio Casas de las Américas, Revelação de Autor da APCA, Guimarães Rosa, Bolsa de Literatura da Fundação Cultural de Brasília e o prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (2010). No final de 97, publica o romance Concerto para flauta e martelo, pela editora Revan, finalista do prêmio Jabuti-98. Ainda no ano de 1998, edita o livro de poesia Terratreme. Durante nove anos dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. É Doutor em Literatura pela UnB. Publicou os seguintes livros de poesia: Andarilho (2000, SetteLetras), Eterno Passageiro (Ed. Varanda, 2004). Em 2005, pela Ed. LGE, lança o romance O viúvo. Em 2009, sai A máquina das mãos, poemas, publicado pela 7Letras. No final de 2010, saiu seu romance Um homem é muito pouco, da Editora Nankin. O livro de poesia Memória dos Porcos, da editora carioca 7Letras, foi lançado em 2012. Pela mesma editora, publica O difícil exercício das cinzas (2014), Matadouro de vozes (2018), A invenção do passado (2022) e A trama do avesso (2024). Em 2019, publica o romance Vieira na ilha do Maranhão (7Letras). A Academia de Maranhense de Letras publica em 2024 o ensaio Narrativas da vida: o personagem do romance.

Respostas de 2

  1. Poesia talvez quase surreal, porque de um surrealismo a desconfiar ou a estar livre do próprio surreal engajado (quanto ao absurdo, as sinestesias não fundem opostos, mas os examinam escaparem). Assim, a poética deste ludovicense não propriamente cética, porque o ceticismo inaugura instituições. Eu ainda arriscaria mais: A poesia que sopra para experimentar as possibilidades dos ares.

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