O livro Almoço nu surgiu como um cavaleiro do apocalipse, escatológico, publicado no ano de 1959, dois anos depois de On the road, em meio ao cenário da Guerra Fria. Imerso em polêmicas, foi acusado de fomentar o uso de drogas, de abraçar a cultura gay e até mesmo de evocar horrores ainda mais profundos; é preciso ressaltar que, ironicamente, William Burroughs é um autor indigesto para a chamada literatura LGBT&ETC; para muitos da comunidade, trata-se de um autor homofóbico. Foi denunciado como repulsivo, ininteligível, e até indecente. A recepção do livro foi tão intensa e ao mesmo tempo polarizada. Seu impacto transcendeu a página, engendrando batalhas jurídicas que o envolveram em uma teia de censura, com tribunais de diferentes nações — dos Estados Unidos à França e à Inglaterra — proferindo sentenças sobre seu conteúdo ousado.
Almoço nu não é meramente uma narrativa sobre a exploração aberta da homossexualidade e o uso da heroína. Ele funciona como um cálice que transborda com os destilados dos anos 60, derramando sobre o presente a cultura das drogas e o hedonismo sexual. Esses aspectos são secundários, embora possa não parecer, mas com a leitura mais atenta se percebe que o grande tema do livro, recorrente na obra burroughiana, é a manipulação das massas pelo Estado, pelos governos, é a engenharia social, como por exemplo, a Engenharia do Consentimento. Para Burroughs, sexo e drogas podem ser ferramentas eficazes que o Estado usa para escravizar as massas. No livro de entrevistas Mente espontânea, Allen Ginsberg menciona essa visão em um trecho atribuído ao próprio Burroughs que diz: o hábito do sexo — sexo como outra forma de junk, uma commodity, cujo consumo é encorajado pelo Estado para manter as pessoas escravizadas pelos seus próprios corpos. Enquanto estiverem escravizadas pelos seus corpos, elas podem ser enchidas de medo, choque, dor e ameaças, para que elas possam ser mantidas em seu lugar.
As pautas de liberação das drogas, como a liberação da maconha, pode ser apenas a ponta do iceberg; em um mundo em que tudo é teatro, nada é exatamente o que parece. As pautas liberais ou progressistas nada têm a ver com liberdade ou progresso, mas com escravidão e manipulação massificada.
A temática do sexo homossexual e suas variantes, bem como a do consumo de drogas é apenas um verniz, ou até uma metáfora, que esconde uma reengenharia social através do uso desses elementos como ferramentas de manipulação e tortura através do consentimento do indivíduo. É a escravidão pelos instintos mais primitivos na busca do prazer hedonista. E se nas décadas de 50, 60 e 70 o uso de drogas e os tabus sexuais eram elementos marginais, uma afronta ao sistema vigente, hoje, em pleno século XXI, tais elementos se tornaram parte do mecanismo do establishment. A revolução sexual e a liberalidade das drogas deixaram de ser elementos marginais para se tornarem mecanismos oficiais do sistema.
Um dos personagens principais da obra Almoço nu, é o doutor Benway, um protótipo de cientista maluco, e uma chave mestra do sistema estatal, inclusive como conselheiro da República de Liberalândia, uma terra dedicada ao amor livre e aos banhos constantes. O trecho a seguir deixa isso bem claro:
Benway é um manipulador, um coordenador de sistemas simbólicos, um especialista em todas as etapas de interrogatórios, lavagens cerebrais e formas de controle.
A obra kafkiana se faz presente, o seguinte trecho é revelador:
Todo cidadão de Anéxia era obrigado a solicitar do governo uma pasta abarrotada de documentos, que deveria carregar sempre consigo. Os cidadãos estavam sujeitos a serem detidos na rua a qualquer momento; então o inspetor, que poderia estar à paisana ou fardado com algum dos diversos modelos de uniformes (…) aplicava seu carimbo depois de verificar cada documento. Na inspeção subsequente, o cidadão precisava mostrar os carimbos adequadamente aplicados na última inspeção. Quando detinha um grupo numeroso, o Inspetor se limitava a examinar e carimbar não mais que alguns documentos. Os outros, por sua vez, passavam a correr o risco de prisão por não carregarem documentos adequadamente carimbados (…) Novos documentos eram exigidos com frequência. Em uma tentativa frenética de cumprir prazos impossíveis, os cidadãos passavam boa parte de seu tempo correndo de uma repartição a outra.
Hoje, em um mundo globalizado, toda essa burocracia foi trocada pela facilidade da era digital, porém, nos tornamos ainda mais presos e dependentes, seja das empresas tecnológicas, da tecnologia em si e do Estado; nos tornamos ainda mais escravizados e vigiados. E tudo com o nosso consentimento.
Os capítulos de Almoço nu são chamados de Rotinas, que são pequenos textos que, no conjunto da obra, aparecem como fragmentos ou peças aleatórias de um quebra-cabeça da quarta dimensão. Como não se trata de uma obra linear, o livro pode ser lido de maneira fragmentada, podendo iniciar a leitura por qualquer parte.
O cineasta David Cronenberg ousou transformar essa obra em filme e, embora a tentativa de capturar a intensidade de uma prosa caótica tenha sido fracassada em muitos pontos, não deixa de ser louvável o esforço. Particularmente, eu gostei dessa visão do Cronenberg e sua adaptação ao filme que, aqui no Brasil, o título é Mistérios e paixões, obviamente deixou a desejar. O filme mostra, ainda que apenas um breve vislumbre, o desespero e a solidão que William Burroughs carregou por quase toda a vida e compartilhou em sua escrita, incluindo a fatídica morte de sua esposa Joan, pela sua própria mão. O seu uivo é ainda mais intenso e desesperador do que o uivo de Ginsberg.
O protagonista da trama, William Lee, emerge como um alter ego flagrante do próprio Burroughs, encenando uma dança frenética de identidades cambiantes, fugas de agentes da lei e traficantes, e viagens psicodélicas que, de alguma maneira, parecem tangenciar o racional. No cerne da narrativa, Almoço nu lança um assalto furioso contra a sociedade ocidental, que se revela sombriamente encarnada nos anos 60. Nesse período, enquanto a publicidade, o cinema e o fast food incitam ao hedonismo, uma rotina avassaladora de trabalho, dívidas e escassez de tempo sufoca os cidadãos. É uma lúcida representação da oferta de bugigangas, ao mesmo tempo em que a sociedade caminha, seduzida pela propaganda, direto para o matadouro.
Mais do que nunca, Almoço nu se mostra atual, enquanto outras obras canônicas dos Beats vão envelhecendo e se desbotando, de modo anacrônico, com o tempo. On the road de Kerouac e mesmo o Uivo de Ginsberg fincaram raízes em um passado distante, um tempo cada vez mais mítico em uma era de inteligência artificial. Já Burroughs segue pulsante, atual e, em certa medida, até profética, alinhada com o processo avançado da desconstrução da cultura ocidental e seus valores, além das questões, que voltam a ficar mais vigentes nos dias atuais, como a existência e o contato com alienígenas e o transumanismo.
Burroughs não abraça um tom didático; ao invés disso, sua prosa quebra todas as barreiras, desafiando o leitor a assimilar e reorganizar, a embarcar numa jornada insólita pelo reino das palavras. Enquanto Almoço nu pode ser uma herança da literatura beat, não se encaixa perfeitamente na estrutura de outras obras de destaque, como On the road. William Burroughs traça uma jornada própria, é como um primo distante da Geração Beat. Ele não cede às pressões da ordem literária convencional.
Se William Burroughs fosse transportado para o século XXI, provavelmente seria um paradoxo ambulante; certamente ele estaria nadando contra a correnteza progressista atual. Nascido em berço de ouro, sua vida se desdobrou em um mosaico de contradições. Contudo, esse nobre renegado, com sua educação privilegiada e suas raízes profundas na contracultura, destilou sua essência nas páginas de Almoço nu, uma epopeia que desafia convenções e instiga reflexões.
Em meio a essa narrativa, emerge a cidade de Tânger. Foi nesse retiro que Burroughs encontrou refúgio após episódios turbulentos, e também onde gestou sua carreira literária em meio a uma paisagem exótica. Tânger, como uma tela de fundo, se tornou um espectador silencioso das loucuras do autor, uma testemunha das “rotinas” que ele transformou em uma escrita alucinada.
Almoço nu não é um tratado convencional sobre o vício, assim como Junkie, mas um testamento da alma atormentada de um usuário de drogas. De forma crua e visceral, Burroughs descreve as agruras do vício, revelando o pesadelo sombrio do que é ser subjugado por substâncias.
Almoço nu é um portal para a psique de Burroughs, um convite para sondar o desconhecido e abraçar o caos. À medida que mergulhamos nas páginas caóticas, somos desafiados a enfrentar a Interzona, a contemplar a fluidez da linguagem e a decifrar o ininteligível. Nesta obra-prima, William Burroughs, que foi grande leitor de James Joyce, não apenas desafiou as normas literárias, mas trilhou o próprio caminho criando rupturas na própria natureza do pensamento.
Almoço nu, de William Burroughs, pode ser lido como uma denúncia feroz das manipulações perpetradas pelos governos e instituições para subjugar e controlar as massas. A obra transcende os limites da narrativa convencional e emerge como uma crítica mordaz à sociedade, à política e à cultura que perpetuam um sistema viciado de um mundo distópico, onde a realidade é retorcida e a verdade é obscurecida, espelhando a maneira como as instituições governamentais e as ideologias manipulam informações para servir aos seus próprios interesses. Através de sua prosa fragmentada, Burroughs denuncia uma sociedade que cada vez mais consente em ser manipulada e escravizada.
Daí a linguagem ser um vírus, pois a linguagem perpetra todas as esferas humanas, e uma linguagem corrompida contamina tudo o que ela toca, tudo o que dela se faz uso. Vale lembrar Tzvetan Todorov, filósofo e linguista, em sua obra Os gêneros do discurso, em que ele diz: O romance não imita a realidade, ele a cria.
A dependência de drogas no livro pode ser interpretada como uma metáfora para a dependência das massas em relação às estruturas de poder ideológico. Assim como os personagens ficam viciados em substâncias, a sociedade se vê viciada em sistemas políticos corruptos e manipuladores, com suas ideologias tresloucadas. As ideologias são corruptas, por isso são violentas e cruéis; as revoluções cheiram a sangue. Todo o discurso está corrompido, portanto, toda a sociedade está em estado de falência, de colapso, e não há nenhum sistema político que pode corrigir isso, pois todo sistema político nasceu da própria corrupção, dotada de violência branca, burocrática.
Além disso, a noção de “Interzona” que permeia o livro pode ser entendida como uma fuga da realidade fabricada pelas instituições governamentais. Se o mundo é um palco de teatro, a Interzona é um espaço mental onde as amarras da linguagem e da manipulação são rompidas, permitindo uma visão mais clara e crua da verdade subjacente. Essa busca por uma zona de clareza e autenticidade é, em última análise, uma busca por emancipação das manipulações governamentais. É como um porto seguro.
O livro é uma sonda na psique humana, revelando as complexidades e as sombras que surgem quando a realidade é torcida pelas mãos do poder. Ao desafiar as estruturas linguísticas e narrativas, Burroughs está, de fato, questionando as próprias fundações do controle e da manipulação impostos pelo sistema vigente.
Em essência, Almoço nu é um grito de resistência contra as forças que tentam aprisionar a mente e o espírito das pessoas. Ao destacar as estratégias de manipulação, seja por meio de propaganda, controle de informações ou sistemas político-ideológicos, Burroughs expõe as engrenagens da máquina que busca subjugar as massas. A obra se ergue como um monumento literário de desafio e insurgência, convidando os leitores a questionar as narrativas impostas e a buscar a verdade além das aparências e do perigo das narrativas comumente massificadas pelas mídias.
Respostas de 6
Excelente ensaio! Acompanhei Burroughs como uma influência em meu primeiro livro, em especial o livro Junkie. Li almoço nu no mesmo período, mas por ser tão hermetico, me apaixonei pela linguagem mas sem entender a profundidade desse ensaio. Pretendo reler em breve, pois foi um dos autores que infectadas as narrativas de Lourenço Mutarelli, meu professor de oficina.
Obrigado Nomura, pelo comentário. Burroughs é um autor importante para se entender algumas coisas…além de ser extremamente atual.
Como de costume, fazendo da ensaística um terreno especialmente fecundo meu amigo. Assim como no seu canal, seus ensaios são sempre um deleite. Leituras únicas e perspectivas que fogem ao clichê.
Carrego grande desinteresse pelos beats. Mas por Burroughs ser o menos beat deles, talvez seja algo que atinja bem as minhas sensibilidades. E por ter influenciado autores que gosto muito como Pynchon e Vollmann. Enfim, fico como de costume ansioso por mais textos seus meu amigo.
Obrigado meu amigo Ulisses, pelas palavras. Também gosto mais do Burroughs, dos beats é o mais maduro e o mais contemporâneo, refletindo muito do que vivemos hoje.
Mateus Ma’ch’adö, com seus crítico pente fino, com a habilidade de sondar os espaços inapercebidos dentre as camadas características das grandes produções literárias, leva aos já leitores de Burroughs a retornarem, como no meu caso, ao livro, ciente de que deixou escapar minúcias-chave para o entendimento, ainda que não total, da obra. Por outro lado, estimula aos possíveis interessados, que não a leram, a não esperarem mais para fazê-lo. Almoço Nu, a partir das considerações de Ma’ch’adö, ressurge na essencial condição de referência da “literatura underground” dos anos 50 e 60.
Agradeço ao estimado Léo, leitor e crítico atento, e um escritor meticuloso, de labor cirúrgico. Suas palavras de reconhecimento são sempre estimulantes, como a sua amizade.