
Henriette Ronner Knip, pintora holandesa (1821-1909)
A visita
A madrugada se avoluma em ausência ao leito de Snoop. O cão dentro de seu olhar excessivo e apático. Do meu quarto, mal assumo a matéria se desligando do mundo que, não sendo dela, lhe concebe a graça e o dom. Enquanto me salvo por entre medo e pesar, ele segue sua educada morte. O velho poodle, não mais que um perdão.
Desprevenido e remoto, o instinto empalhado, o fôlego interrompendo-o. A carcaça se enraiza no farrapo de lençol. A excursão do silêncio soma-se às minhas leves carícias, mas até quando? Que lobo lhe negara a matilha e a presa? Não respondendo à entrega da alma, sinto o instante de sua longa vida. Nesta hora em que tento uma maior proximidade, seu focinho é a perícia vã vivificado na pronúncia de seu nome. Snoop! Snoop! A pintura rupestre se principia, seu nome de repente move as rotas orelhas no confuso silêncio. O corpo ainda vive a própria inexistência. Os despojos que o sustentam dão ao quartinho o mérito de meus carinhos. Sequer a tosse, a agressão nos dentes secundarizando a comida salva. Com o soro na seringa, forço-lhe a boca e ponho à prova meu inseguro estômago. O miserável está no meu nojo e piedade, no sequer.
Sem procurar pela noite avançada, revisito o moribundo. Escondido na pelagem clara, expõe o próximo penúltimo suspiro. Não separa sorriso de choro, olha-me em bronze rápido, os olhos substituindo-o. Snoop cede lugar à sua coragem, a mesma do quarto exato demais para um adeus. Em sua cardiopatia, o bicho não luta. É orgulhoso e forte por entre os escombros do ventre, distante de um plano de dor. Examino os remédios, a osteoartrite, o organismo canino com seu único recurso: ser.
– A porta! O cachorro vai sumir!
Agora a ponta roxeada da língua aparece, esmola pelas Humanitas. Snoop me tira o sono ao que um próximo da espécie me daria a mesma glória. E pelo ridículo da vida não se alcança o escuro vulgar: quem é vivo tem sempre uma esperança. Vez ou outra semiergue o olhar sem canal: vida e morte longe de duelo. Está preso à doçura do fim. As patas vencidas pelas vértebras, o corte da cauda. A quase vibração canina me leva a pensar – e pensar, ainda que raso, diz à minha condição: Um poodle não é animal para homem! Enquanto isso, segura-se numa veia remanescente, ameaça estúpido movimento de incomunicável bondade. O Snoop morreu!
E um dia ele ouve minha voz, atravessa esta mesma porta, experimenta meu amor medroso. Sem que eu empreenda a posse justa, sua alegria boba e profunda me leva ao quarto, onde vejo o tempo de um homem e a madrugada.

G. Monteiro é poeta, contista, ensaísta e um dos editores do site Amaité Poesia & Cia. Editou, junto com o escritor João Pinto, o espaço virtual Contos entre Paisagens, de 2019 a 2022. Seus textos integram várias coletâneas e antologias através de concurso literário. Escreveu o livro de contos Paradeiro (2016), o de poesias Depois das horas (2021) e O exercício do nada (no prelo).
Respostas de 4
Mais um profundo e instigante conto do querido Geovane! Parabénss, moço!
Obrigado pelas gentis palavras, poeta Sebastião Ribeiro!
Parabéns! Geovane. Seu texto é tocante, reflexivo e de leitura agradável. Quero mais!
Olá, Mateus! Obrigado pela confirmação da leitora e especialmente pelas atentas palavras. Ando tentando me aproximar mais das coisas ” mais básicas”, do que realmente importa na vida. Sigamos, cada um com sua dicção,com sua íntima honestidade na escrita!