Coluna Guido Viaro: O Quadrado/Capítulo 8

Ilustração: Pierre Paul Parmentier


A Europa voltara a tocar as solas de seus sapatos, Hildebrand sentiu uma alegria tão genuína que conseguiu contaminar sua esposa, que pela primeira vez em muito tempo sorriu porque precisava dar vazão a alguma quantidade de alegria. Ela também entusiasmou-se com a proximidade dos eventos e com as dezenas de entrevistas que os transformaram em celebridades. Em vinte dias percorreram onze países europeus além de concederem entrevistas para redes de televisão americanas, canadenses e japonesas. Liotta encheu os olhos de uma emoção volúvel quando, ao saírem de um estúdio de televisão em Bruxelas, se depararam com uma foto do casal estampada em um outdoor que anunciava a primeira das três aventuras geladas.                                                                                                         

O número de seguidores se aproximava de um milhão e não parava de crescer. A quantidade de mensagens era tamanha que o patrocinador contratou especialistas em marketing que enviavam alguns tipos de respostas padrão, e em casos específicos e quando necessário, respondiam com mais profundidade. As dúvidas de Liotta secaram como flores que perdem as raízes, eles davam autógrafos, tiravam fotos e saíam dos estúdios de televisão escoltados por seguranças. Os quartos de hotéis eram seus refúgios, era lá onde davam risadas, recordavam dos acontecimentos diários, e, principalmente, comiam. Hildebrand agora ostentava uma vistosa papada que jamais possuíra, suas camisas e calças já não serviam mais, e seu guarda roupas precisou ser completamente renovado. Liotta ganhara mais alguns quilos que inflaram suas bochechas e desceram por suas pernas instalando-se em suas panturrilhas e pés, que começaram a se parecer com dois grandes pães de forno.                                                        
 
Cada quilo ganho era comemorado, porque em teoria, significava que os desafios seriam um pouco menos sofridos, além disso, ambos acreditavam que quando tudo terminasse, conseguiriam se livrar com facilidade do peso ganho. Sem nunca comentarem com o parceiro, ambos nutriam um pensamento parecido, a vida deles até ali havia sido um grande plantio. E durante anos acreditaram que todo o esforço havia sido em vão. Nada brotava, e a terra parecia apenas engolir suas gotas de suor, sem retribuir com nenhum fruto. De repente, quando já não havia mais esperanças, e ambos começavam a enxergar na terra desolada apenas o local de sua última morada, a terra começa a ser furada por brotos. Eles estão por toda parte, são frondosos, coloridos e prometem frutos.                         
 
Uma famosa editora americana entrou em contato, queriam publicar a história daquela aventura, do momento em que se conheceram até o instante em que terminasse a última aventura gelada. Uma semana antes da primeira noite, embarcaram para Tallin, onde atenderam a dezenas de pedidos de entrevistas. Repetiam sempre as mesmas expressões surradas: desafio pessoal, teste de limites, vitória sobre o que parece impossível. Palavras que ambos, a princípio, julgavam exageradas e até mentirosas, mas que, aos poucos, foram ganhando naturalidade ao sair de suas bocas, e não deixando qualquer gosto amargo.                                                             
 
Na véspera do evento a temperatura em Tallin era de doze graus negativos durante o dia. As previsões indicavam que cairia a dezesseis ou dezessete, dessa vez o aquecimento global não os ajudou, teriam de encarar o maior frio até agora. A boa notícia era que não havia previsão de neve ou ventos durante a noite. Hildebrand dispensou algumas entrevistas e o casal decidiu passar o dia no hotel se concentrando para o desafio. Experimentaram os novos cobertores e isolantes térmicos, que aparentemente eram bem mais eficientes que os antigos. Testaram baterias, equipamentos e até os invólucros que foram enviadas para proteger câmeras e celulares, que podem apresentar defeitos em temperaturas muito baixas. Então ensaiaram a posição em que permaneceriam embaixo dos cobertores, uma perna entrelaçada gerando um pequeno espaço onde posicionariam uma câmera e um pequeno refletor. Tudo pareceu funcionar bem, e após alguns instantes suavam, pois o quarto era aquecido.                            
 
Da janela contemplavam alguns indecisos flocos de neve arrastados por uma brisa, e que dançavam antes de finalmente caírem sobre o asfalto cinzento. Eles ainda eram poucos, pequenas manchas brancas sem força para vencer a cor dominante. Liotta logo percebeu que aquela cena poderia ser um ímã para ideias negativas e voltou para a cama, onde Hildebrand, pela primeira vez em dez dias, parecia introspectivo:
                                                
“Vamos combinar uma coisa… sabe, se ficar muito difícil para você ou para mim, desistiremos, nossa vida… uma palavra código para informarmos ao outro que não aguentamos mais…”                                            
“Sim, mas vamos conseguir… em todo caso concordo, a palavra pode ser: limoeiro. A volta ao calor de Limoeiro do Norte.”          
“Combinado.”                                                                                               
 
Pouco depois Hildebrand adormeceu, ainda não eram seis horas da tarde mas a noite já estava escura. Liotta voltou para perto da janela, agora sem medo da escuridão de suas ideias. As manchas brancas eram mais visíveis, e a neve parecia ter toda a paciência do mundo para conquistar seus objetivos e cobrir o mundo inteiro. Com cuidado para não fazer barulho ela abriu a janela de vidro duplo e na ponta dos dedos sentiu um pouco do frio que a aguardava no dia seguinte. Alguns segundos foram suficientes para avermelhar seu indicador. Com a janela fechada passou a observar a infinidade de pequenos pontos de luz amarelada que se espalhavam pela cidade, cada um deles representava uma ou algumas consciências. Todas devidamente protegidas do frio, estivessem em casa ou dentro de seus carros, que também emitiam luzes amareladas, todos se isolavam das forças da natureza, construindo iglus que embalavam corpos e almas, e preparavam para um sono implacável.   
                                                   
Mas ela, Liotta, era a vela acesa que iluminava esse mundo pálido, espalhando os meios-tons incinerados por sua alma vigilante. Era olho e sombra anônima, e aspirava os odores sob a forma de luz mortiça, que se confundia com a bruma e com os vapores que se erguiam do chão. As luzes dos faróis faziam como os seres humanos, e tentavam se perpetuar além de seus curtos limites, refletiam na bruma ou no branco dos tímidos montes de neve, mas em seguida, como também acontece com os humanos, desapareciam para dar lugar a outro indivíduo. 
                                                      
Então, no reflexo do vidro do quarto, os caninos de Liotta fizeram uma discreta aparição. Não podemos chamar isso de sorriso, talvez uma tentativa, ou a caricatura de um. É que ela havia entendido alguma coisa, ou percebido, levantara o tapete da vida e descobrira resquícios que indicavam como viviam e como eram os sonhos de outros que viveram antes dela. Sim, ela estava sozinha. Não havia ninguém ao seu redor, nem os sorridentes patrocinadores, ou os fãs pedindo fotos e autógrafos, não havia Hildebrand ou qualquer outra pessoa. Estava só, e essa era sua realidade, assim como a de seu marido, dos patrocinadores e fãs. Todos absolutamente sós.  
                                                                                           
Mas sua tentativa de sorriso aconteceu, porque essa não era a primeira vez que constatava sua solidão, e a de qualquer outra pessoa, mas era inédito que essa constatação não lhe trouxesse tristezas. Havia percebido uma realidade que contrariava todo o sistema de viver existente desde o nascimento da civilização, e que permeava todas as doutrinas que a mantinham em pé, e que também se espalhava pela vida íntima do indivíduo, construindo a moral e suas consequências, havia percebido que o mundo conhecido era sustentado por alicerces de isopor, e que a humanidade inteira, homens simples, imbecis, sábios, artistas, pensadores, se batera durante milhares de anos para louvar a solidez dessas colunas indestrutíveis. E agora, na véspera de cometer um dos atos menos inteligentes de sua vida, enquanto um marido náufrago, que a arrastara para o desastre, dormia, e ela contemplava uma paisagem entristecida, assistindo almas anestesiadas pelo frio, afogadas em uma cidade cujo medieval era lentamente devorado pela luz desalmada dos leds anglofônicos, ela, Liotta, uma ex-prostituta, uma mulher não muito distante da velhice, que acabou de perder seus contornos para a gordura, e desconhece qualquer ligeiro esboço de como será seu futuro próximo, e por isso teme e por isso treme, essa mulher que perdeu a filha deficiente, que agora repousa não muito distante do mestre Balzac, mas que ela mesma sabe que nem a filha nem Balzac repousam em lugar algum, pois os lugares, o tempo, e o cansaço morrem conosco.
                                                                                         
Essa mulher, que é tábua do casco de navio afundado, mas que persiste, flutuando, ela percebe que só há o homem e que só há mulher, e que eles só existem como indivíduos, e que todo o resto, as relações humanas de todas as espécies e profundidades, os gritos e movimentos coletivos, as ideias e a vontade de gerá-las, as imensidões espalhadas por universos e átomos, tudo isso não passam de detalhes ínfimos, a cor da meia escolhida para o defunto, pois a solidão é grandiosa, é ela o cimento que sustenta o indivíduo, e é ele, o indivíduo, e não os isopores coletivos, que fazem com que o mundo permaneça em pé.                                        
 
Encerradas essas reflexões Liotta foi se deitar, misturava sorrisos e lágrimas, e quando se deu conta disso, os sorrisos aumentaram, fazendo com que seus olhos secassem. Acendeu a luz da mesinha de cabeceira para olhar para Hildebrand, que desta vez não emitia qualquer ruído. Ela perguntou-se onde ele estaria, talvez flutuasse por aí, em uma busca desesperada por seus desejos. Exercia seu momento de maior individualidade, em alguma horas acordaria, e então precisaria ser menos ele mesmo, e isso se repetiria, dia após dia, até quando finalmente abandonasse o mundo e fosse substituído por outro indivíduo, que como ele, aceitasse se anular para exercer seu papel coletivo.                                             
 
Ela experimentou uma sensação de relaxamento que se espalhou por todo corpo, então adormeceu iluminada pela luz que a fez perceber que o marido buscava seus desejos. Quando acordou, a noite preparava-se para ir embora, e Hildebrand não estava ao seu lado. Em silêncio checava o equipamento que iriam utilizar. Ela suspirou fundo e espreguiçou-se na cama, aproveitando os confortos que não teria na noite seguinte. Então pisou o chão. Sabia que se tratava de um dia importante, mas desconhecia a qualidade e a direção dessa importância. Hildebrand a pôs ao par dos preparativos e mostrou uma mensagem que havia recebido do patrocinador. Era uma espécie de roteiro. Deveriam falar pouco, não interagir com seguidores, a cada meia hora mencionar a temperatura e alguma frase sobre como estavam se sentindo, e citar de maneira indireta a marca dos equipamentos. No final, deveriam agradecer a todos os seguidores, e anunciar data, horário, e local do próximo desafio. Só isso, mais nada. Liotta sentiu-se aliviada, pois nos outros desafios, grande parte de sua energia foi gasta tentando preencher espaços vazios e interagir com os seguidores. 
                                                                                                  
Saíram do hotel para almoçar, uma refeição pesada baseada em carnes. Enquanto comiam foram reconhecidos e precisaram tirar algumas fotos. Voltaram ao hotel para descansar até o horário em que a van viesse buscá-los. Antes das dezoito horas a noite já era adulta, chegaram ao local escolhido, no alto de uma muralha medieval. Instalaram os refletores acomodaram os isolantes térmicos e cobertores, Apesar de não estar nevando e a previsão indicar que isso não aconteceria durante a noite, os restos de uma neve fraca ainda cobriam o alto da muralha. Com uma pequena pá, Hildebrand espantou os flocos e posicionou os colchonetes sobre uma pedra quase seca.                                                                                
 
A noite estava limpa, e para uma cidade relativamente grande, havia muitas estrelas visíveis, que pareciam crianças pedindo doces, mas ao contrário das crianças, as estrelas pediam pensamento, reflexões sobre aquilo que existe além do cotidiano. Mas eles não tinham tempo para as estrelas, muitos detalhes para vigiar, baterias, sinal de internet, um mundo que não precisava existir para eles, mas para todos os outros. De qualquer forma, alguns segundos antes de iniciarem a transmissão, Liotta apontou a câmera para o céu, mesmo sabendo que o que assistiriam seria um borrão escuro. Essa foi a primeira imagem transmitida, do alto, a câmera baixou até Hildebrand que com suas poucos palavras previamente escritas, cumprimentou e agradeceu ao público, e explicou como se desenrolaria a aventura. Ele havia, em pouco tempo, adquirido uma fluência na apresentação, aproximando-se de um profissional.                                                 
 
As mensagens, que agora não mais seriam lidas pelo casal, pelo menos durante a noite, começaram a chegar em grande número:                   
 
< Parabéns queridos, muita coragem.                                                  
< O que aconteceu com a Liotta? Engordou demais.                           
< Espero que o frio vença essa batalha, e os dois morram congelados.
< Quinze negativos com esses equipamentos todos, qualquer um consegue.
< Ouvi falar que essa mulher já foi puta.                                                      
 
O casal se instalou em seu abrigo, tomou chá quente, e a cada meia hora mantinha os seguidores atualizados sobre a temperatura e como estavam se sentindo. A temperatura chegou a dezesseis negativos, mas com os novos equipamentos Liotta sentia muito menos desconforto do que em Ushuaia, quando a temperatura era menos baixa. De qualquer forma o frio era intenso, e parecia que uma fera sanguinária estava amarrada a poucos metros de distância deles, por enquanto, só o que sentiam era o som da selvageria, sem no entanto experimentarem qualquer arranhão. Estavam protegidos, mas até quando? Qualquer pequeno pedaço de pele deveria ser coberto sob pena de voltar avermelhado após poucos segundos de exposição.                                                                                                            
Os grossos macacões conservavam o calor dos corpos, mas parecia inútil a proximidade e o entrelaçamento do casal, ninguém aquecia ninguém, aquilo funcionava apenas com temperaturas mais altas, próximas do zero. Mas como aquele era o coração publicitário da aventura, resolveram continuar abraçados e com uma perna entrelaçada. Revesaram-se em cochilos, enquanto o outro parceiro se ocupava da supervisão de detalhes e do informe aos seguidores que acontecia a cada meia hora. A fera permanecia a poucos centímetros de suas peles, urrando, ameaçando suas civilizações com o que existe de mais selvagem. Mas até ali, os isolantes e cobertores tecnológicos os protegiam de suas garras, e as peles permaneciam intactas, o frio aparentava ser o perigo contido em um trem-fantasma.   
                                                                                                            
A madrugada trouxe ainda mais estrelas, e por um instante, Liotta, que não estava em seu turno de trabalho, e poderia usar o tempo para um cochilo, aceitou seu convite. A eternidade espalhava seus grão de alpiste na forma de pontos esbranquiçados no céu, na esperança de que, nós, homens e mulheres, seguíssemos atrás desse alimento, para então, depois de bem nutridos, apreendêssemos aquilo que jamais fora ensinado em nosso planeta. Ela sabia que não dispunha de tempo para aceitar esse convite, mas também que, nas raras ocasiões em que eles acontecem, o tempo era o que menos importava, normalmente terminava barrado na porta de entrada. Devorou as estrelas e pediu pelo próximo prato, ele não tardou, mas conforme ela temia, veio em forma de pergunta. Apenas uma palavra seguida por um ponto de interrogação: significado?                                               
 
E ela agora que escolhesse, voltava para o cotidiano ou mergulhava em águas profundas e agitadas? Mergulhou de olhos fechados sem se atentar com funduras. Qual era o significado? Haveria um? Se, de fato, existisse um, sobre que tipo de matéria estaria ele assentado? E esses sustentáculos, que suportariam o peso daquilo que significava, não seriam ainda mais significativos do que a carga que tinham sobre o lombo?                   
 
Hildebrand gritou. O sinal havia caído. Ela foi imediatamente trazida de volta, e assim que chegou, carregou consigo o sinal de internet, que também se ausentara por alguns instantes. Ele respirou aliviado, mas segundo as instruções do patrocinador, evitou fazer muitos comentários. A memória dos questionamentos voltava cada vez que ela olhava para cima, mesmo quando as estrelas começaram a se preparar para a viagem, e as luzes melancólicas atacaram a escuridão. Esse foi o instante mais frio, o termômetro bateu dezessete negativos, e uma das feras conseguiu arranhar o punho de Hildebrand, quando ele descuidou-se e deixou a pele descoberta, uma ferimento sem importância, uma mancha avermelhada. Depois disso, o sol enfraquecido de inverno, uma presença quase protocolar, dezesseis, quinze, quando encerraram a transmissão.                         
 
Roteiro obedecido com precisão, tudo perfeito. Voltaram ao hotel e ambos atacaram o sono como um pai que tem pela frente o algoz amarrado de seu único filho. Na metade da tarde foram acordados por agentes dos patrocinadores, queriam cumprimentá-los e mostrarem números da audiência, a quantidade de seguidores havia aumentado para um milhão e duzentos mil. Eles tiveram cerca de setecentos e cinquenta mil espectadores, sendo que o pico de audiência foi meia hora após o início da transmissão, quando tiveram perto de cem mil seguidores assistindo simultaneamente. As doações chegaram a vinte e sete mil euros e esse dinheiro já estava à disposição deles.                                                                       
 
Então o casal precisou responder a um longo questionário sobre como haviam se sentido, se em algum instante o desconforto do frio ultrapassara a barreira do suportável, se depois de encerrado o desafio, sentiram alguma consequência como tosse, tremores, febre, e até tristezas, ansiedades, ou euforia. No dia seguinte ambos teriam uma consulta médica onde a saúde seria avaliada antes de partirem para o próximo e bem mais difícil desafio, que ocorreria em duas semanas em Ulan Bator, capital da Mongólia.                                                                                                             
Ambos foram aprovados nos exames, com uma pequena ressalva para a pressão arterial de Liotta, que estava um pouco acima do normal, mas nada que a impedisse de participar do próximo desafio gelado. Eles concordaram que chegariam em Ulan Bator dois dias antes, apenas a tempo de conceder algumas entrevistas que já estavam agendadas. Enquanto isso queriam fugir do frio, mas nada de longos deslocamentos e fusorários distantes, optaram pelas temperaturas amenas do sul da França. Com dinheiro no bolso, e a perspectiva da chegada de muito mais, Hildebrand não quis economizar, escolheu um resort próximo a Antibes, com a diária de 800 euros. Era um luxo que mereciam, da janela do quarto nada além do azul perolado do Mediterrâneo pincelado pelo branco dos veleiros, afora isso eram refeições fastuosas, massagens, e um dolce far niente que quando ameaçava se transformar em vazio, era interrompido por alguma outra atividade. Os dias escorriam como grandes gotas de sol, e à noite, o salão principal era movimentado, charutos, jantares, mesas de cartas, risadas daqueles que eram servidos, que se alternavam aos bocejos dos que serviam. Havia grupos impenetráveis formado por casais em lua de mel ou famílias cujos rostos pareciam marcados por uma genética tão pronunciada que impedia conversas com todos que não se parecessem com eles.                    
 
Mas havia os de outro tipo, aqueles ansiosos por narrarem ninharias e escutarem seus ruídos, e foram eles que fizeram a notícia se espalhar, o casal logo se tornou celebridade, teve de responder perguntas e tirar fotos, receberam muitos convites, vilas na Sardenha, chalés na Suíça, fazendas nos Estados Unidos, tudo agendado para depois do último desafio. No final da última semana Hildebrand começou a ficar cansado do constante assédio dentro do Resort e avisou Liotta que sairia sozinho, uma caminhada, colocar as ideias no lugar, pensar no futuro. Ela pareceu contente com o que ouviu, pois temia que apenas ela estivesse pensando em mudanças.              
 
Ele saiu sem bagagem ou dinheiro no bolso, caminhou pela praia até se cansar, a concentração urbana diminuiu a faixa de areia aumentou, as pequenas ondas azuis prosseguiam sua missão, arrebentavam-se, parte virava espuma e parte era sugado novamente para dentro do mar. Assistiu ao derretimento da espuma, que aparentemente transformava-se em nada. O sol de inverno parecia feito para iluminar, e espalhava suas chamas pelas areias, pelo mar, misturando seus amarelos a outras cores, e construindo uma luz, que de tão bela, causava frêmitos nas almas mais sensíveis. Ele olhou para o horizonte, uma perfeita linha, então sentiu que tudo o que havia ao seu redor, era a vida acontecendo, a mesma vida que animava os pensamentos que naquele instante tinha à respeito da vida, eram todas gotas de água sendo conduzidas pela correnteza. Mas esse inevitável, era doce e prazeroso.    
                                                                                                      
Deitado na areia experimentava os amarelos que conseguiam atravessar suas pálpebras, uma tenra situação, que espalhava prazeres por todo seu corpo, e que se ocorresse antes do nascimento, e o feto tivesse poderes sobre o seu destino, faria com que a humanidade desaparecesse, pois ninguém se despediria desses gozos para mergulhar em um mar pontudo cheio de incertezas. Usufruiu desse paraíso perdido até seus ossos cansarem do descanso. Então, voltou a contemplar o horizonte, aquela linha perfeita, que parecia emendar-se na eternidade. Suspirou, engoliu mais luzes do que seus olhos suportavam, e quando ficou em pé, e limpava-se da areia, foi atacado pela ideia, um tsunami que não permitiu reações:                     
 
A linha do horizonte poderia ser um lado de um imenso quadrado, atrás dele haveria outra linha, invisível aos seus olhos, e dos dois lados, mais duas linhas, que prosseguiriam, formando quatro entroncamentos, os quatro ângulos do imenso quadrado. Essa figura gigantesca possuiria como significado a soma de tudo que estivesse contido em sua superfície. Cada grão de areia, todas as pessoas, as plantas, cada animal, objeto, todos os encontros, integrações, cada um dos acasos, das ondas arrebentando-se simetricamente, das espumas desaparecendo como poesia não escrita, todo o vento, a chuva e o não acontecido, o silêncio entre duas notas musicais, o desejo corroendo ossos e almas dos jovens, a paz e a revolta polvilhando as noites envelhecidas, as luzes de todas as cores e profundidades, os escuros abissais, e até mesmo o nada, o quadrado significaria a soma e a mistura de todos esses significados.   
                                                                                      
Hildebrand sorriu, havia decifrado seu enigma, mas um instante depois seu sorriso derreteu como a espuma das ondas, a soma de todos aqueles significados, mas o que isso queria dizer, se não conhecia os significados individualmente? O que significava, por exemplo, uma formiga, ou a luz rosada que acompanha o mergulho do sol no mar? Sua descoberta equivalia à afirmação de que o universo era imensamente grande, ou que a vida humana possui um limite máximo de duração. Um imenso lugar comum. Mas talvez esse fosse o limite para homens como ele, homens comuns. Quase nunca sentiam necessidade de deduzir algo, e quando o faziam, a dedução nunca passava de velhas palavras requentadas, a mesma comida de sempre, mas decorada com filetes de azeite balsâmico.                
 
Um nó avolumou-se dentro de sua garganta. Mas então a brisa soprou, a criança sorriu e fez com que a dor, massa compacta de chumbo, afunda-se no oceano, as nuvens dançaram, construíram formas sem permanência. Uma gota molhou sua nuca, no horizonte os gritos mudos da eletricidade. Seus passos eram a falta de certezas, seu corpo e alma eram só pés. Vacilou entre gotas gordas cheias de vontades, depois aceitou as águas, as areias, o céu. Os vapores faziam com que todas as camadas se confundissem, e ele mesmo era o único ponto não unânime, que flutuava vacilante no meio do borrão sem brilhos no qual o mundo havia se transformado. Nenhum dos elementos parecia contente com sua presença, mas como ele era, e sabia ser, e afora isso nada de muito importante lhe restava, só o que a lógica o indicava, era que deveria prosseguir, continuar sendo. E foi o que fez, atravessou quilômetros inóspidos de areia varridos por um vento que parecia estar ali com o único propósito de encher seus olhos de ardidos, e dificultar seu caminho.                                                               
 
Ao chegar ao Resort foi recepcionado por um funcionário com uma toalha na mão. Enquanto tomava banho avaliou sua experiência, nada havia decidido sobre sua vida, ou concluído sobre a vida de uma maneira geral. Mas havia sido atravessado por sensações e percepções estranhas, e talvez a vida funcionasse mesmo assim, nada de conclusões, palavras amarradas construindo uma ideia, as palavras, assim como o vento e as luzes do horizonte, precisam estar libertas para que a vida se manifeste, e ela nunca pode ser apreendida em garrafas, dissolve-se como espuma do mar, sobram as impressões em forma de memória, mas que alguns instantes depois, não correspondem exatamente ao acontecido. Portanto, não há portantos, é só isso, ventos inconstantes manchando com luzes e calores a pele, até que nem eles, nem as peles existam mais.  
                                                                           
Nos últimos dias no resort o casal evitou exposições e passou a maior parte do tempo no quarto ou em caminhadas pelas praias vizinhas. A data da próxima aventura latejava como uma ferida purulenta, e o clima de descontração e brincadeiras que circundava o casal era uma maneira que ambos utilizaram para tentar despistar o medo que sentiam. Evitavam tocar no assunto, e quando falavam em futuro, era apenas sobre aquele que sucederia a última aventura. Mas as noites de ambos, tanto enquanto o sono não chegava quanto quando ainda não partira, era recheada de perigos, ansiedades e catástrofes. Fato que, mesmo para o ateu praticante Hildebrand, acabou inflando pressentimentos, esvaziando certezas e até fazendo com que recorresse à superstições.                                                                    
 
Na última noite em Antibes não conseguiram escapar a uma pequena celebração dedicada a eles pelos hóspedes, brindes, felicitações, desejos de sucesso e até alguns presentes contra o frio, echarpes, luvas e gorros. Nada que pudessem usar, pois as roupas eram todas fornecidas pelos patrocinadores. Os sorrisos e agradecimentos custaram a ambos uma energia de que não dispunham, e logo que o jantar terminou, pediram licença e se retiraram. Os desejos de boa sorte tiveram sobre o casal um efeito contrário, suas dúvidas dobraram de tamanho, e o silêncio invadiu o quarto e só foi expulso pelos roncos de Hildebrand, que onde estava também temia e tentava buscar soluções para a enrascada em que havia se metido. Enquanto isso Liotta olhava-se no espelho, descobria estranhas luzes ao redor dos olhos, encontrava novas linhas de expressão, ilhotas de gordura espalhadas pelo rosto e pescoço, mas nada disso tinha muita importância. O que a assustou foi uma sensação estranha, aquele rosto parecia haver perdido a ligação íntima que sempre mantivera com a sua própria consciência.      
                                                                                      
Sabia que aquela era ela, mas o parentesco havia diminuído, os laços enfraquecido. Talvez pudesse acontecer que o acaso a colocasse em frente a outro rosto, que reconheceria mais como o seu do que aquele que agora refletia-se no espelho. E então, como agiria? Viveria dividida? A consciência em um corpo, e a imagem que a consciência faz de si mesma em outro? Esse talvez fosse um dos maiores castigos que se pode impor a um ser humano. Ela então cravou as unhas na própria testa, um pouco antes do sangramento, retirou-as. Era preciso aumentar o vínculo, a dor foi bem- vinda. Estava exausta, nervosa, com medo, não queria recorrer à janela com medo de encontrar uma paisagem medieval onde pingos de neve manchavam igualmente as velhas pedras e os acrílicos coloridos. Foi então que se lembrou que não estava mais em Tallin, e que a varanda mergulhava nos escuros do Mediterrâneo.  
                                                                                      
A brisa noturna lambeu seus braços como um amante que deseja arrancar uma a uma as pétalas do prazer. Imediatamente, mesmo sem espelho, ela voltou a ser quem sempre fora, o que retirou de seu peito quase toda a angústia que sentia. A lua cheia havia sido rasgada, e seus pedaços se espalhavam pelo oceano, o movimento mostrava como mesmo sólidas rochas como as que formam a lua, poderiam se transformar em material volúvel, que perdia suas certezas e dançava conforme os desejos do mar. Ela sorriu, era impossível que não o fizesse. Mas não era alegria. Era vida.  
               
Dormiu sem sonhar e quando acordou era o dia de partir, uma longa jornada entre aeroportos, muitas horas de espera e na chegada, muito frio. Depois disso as entrevistas, sorrisos e frases nas quais pouco acreditava. Agora o medo parecia distante, uma sombra que paira no horizonte, mas que acabamos nos esquecendo de sua presença. Estavam ansiosos, que o frio viesse logo, só assim poderiam se livrar dele o mais rápido possível. E ele veio, como nunca. Antes do avião descer o piloto anunciou que a temperatura em Ulan Bator era de trinta e dois graus negativos. Eles estavam preparados, mas mesmo assim a curta distância que separava o aeroporto da van que os aguardava para conduzi-los ao hotel, foi suficiente para demonstrar o que os esperava. Qualquer pedaço de pele descoberta parecia que era atravessada por uma flecha na forma de espinhos, que rasgava a pele e a inflamava, até o dor se tornar insuportável. Depois disso o que vinha era o desligamento daquela função, uma mão, pé ou nariz, que deixavam de cumprir suas funções e eram desconectados para sempre.          
 
Da janela do quarto a paisagem era mais desoladora do que em qualquer outro lugar, a feia arquitetura comunista era varrida por uma neve que, devido aos ventos, dançavam na vertical. No meio desse inferno gelado alguns gorros de pele de urso se movimentavam com dificuldade. Eles se olharam sem dizer nada, mas cada um sabia as palavras que o outro queria dizer, e que eram iguais às que eles mesmo diriam. Olhos e bocas desejavam, a todo custo, conjugar o verbo desistir. Depois de alguns minutos, como nenhum dos dois teve coragem de pronunciar nada, Liotta foi se deitar.
                                                                                                                   
O dia seguinte foi cheio, entrevistas em televisões e rádios, as mesmas palavras mecânicas pronunciadas sem entusiasmo, mas que pareciam funcionar e despertar interesse no grande público. O lugar onde passariam a noite já havia sido escolhido, uns campos congelados não muito distantes de um hospital. Ao sair da última estação de televisão, Liotta pediu para usar o banheiro, no espelho observou o surgimento de uma onda de tristeza imensa, que a inundou, e fez com que não se importasse com o chão gelado. Desmoronada, assistiu à apresentação de todos seus demônios, que pareciam mais confiantes e assustadores do que nunca. Eles tinham vozes agudas, eram feios e malcheirosos. Suas pálpebras não possuíam qualquer efeito contra os monstros, eles nunca deixavam de serem vistos.  
                                                                                     
Ela derreteu, e com ela todas suas energias, quando o último dos seres urinou sobre seus olhos, ela escutou as batidas ansiosas de Hildebrand na porta. Isso espantou o fantasma gordo e velho que ainda vasculhava o vaso sanitário em busca de alguma imundície, e fez com que ela se levantasse rápido do chão, alguns segundos lavando o rosto e depois a série de perguntas repetidas de seu marido, todas respondidas com mentiras. No final, foi a vez de Hildebrand mentir, dizendo a ela que acreditava em suas respostas.  
                                                                                                             
De volta ao quarto, ambos sentiam que uma nuvem escura pairava sobre suas cabeças, e que, ao contrário do que havia acontecido outras vezes, quando a nuvem não era tão densa e extensa, agora não seria adequado agir como se nada tivesse acontecido, fingir uma alegria que não existia. O silêncio foi tão espesso quanto a nuvem escura, e logo se transformou em sono fingido, ambos ruminando medos e transformando dores passadas em possibilidades futuras. As lágrimas secaram sobre fronhas engomadas mergulhando cada um deles em seu particular mundo aleatório, onde pessoas mortas contavam histórias longas, que pareciam recheadas de símbolos, que ambos tentavam sem sucesso decifrar.                         
 
Pela manhã a temperatura era de vinte e sete graus negativos, e assim como a temperatura, o estado de ânimo deles tivera uma ligeira melhora. Testaram equipamentos, descobriram que o número de seguidores havia aumentado e se aproximava de dois milhões, fato que foi encarado como mera curiosidade, não arrastando consigo qualquer alegria. Almoçaram proteínas de todas as cores e tipos e voltaram para o quarto, lá encontraram mais cobertores térmicos e um isolante extra. Parecia que os patrocinadores compartilhavam de suas preocupações. Quais seriam as consequências de promover a morte de duas pessoas ao vivo?
 
O telefone do quarto tocou, e antes de atender, Hildebrand imaginou alguém da empresa anunciando que devido às temperaturas extremamente baixas, a aventura estaria cancelada, mas eles, mesmo assim, depositariam os duzentos mil euros.                                 
 
Quem ligou apenas informou sobre o horário em que a van passaria para pegá-los.     



Guido Viaro é um escritor, cineasta, administrador cultural e palestrante nascido em Curitiba em 1968. É autor de 22 romances dentre eles o livro O Cubo Mágico, premiado com o primeiro lugar na categoria romance no Concurso Biblioteca Digital 2020, da Biblioteca Pública do Paraná. É também autor do ensaio filosófico O Labirinto Espelhado e de quatro filmes entre ficção e documentários. Desde 2009 administra o Museu Guido Viaro, entidade cultural que tem por missão divulgar e preservar a obra de seu avô, o pintor italiano Guido Viaro. No museu as atividades artísticas não se atém à pintura, mas englobam música, cinema, literatura e teatro.

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