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Ilustração: Gustavo Boggia |
nascimento
não nasci das ondas do mar não nasci do sopro da brisa
este fogo que bombeia minhas veias
tem outro nascimento em local ignorado
em dia desconhecido
o calor me tomou nos braços muito cedo
(meus dedos cheirando a pólvora nasceram antes de mim)
acendendo tochas na fogueira do verbo
entoando assustadoras cantigas de ninar
não nasci do sopro da brisa não nasci das ondas do mar
contradições
você escapa sem remorsos
nas fugas da palavra e do peito
está aqui mas nem sempre
não deveria não
deveria sim ser assim
coleciona centenas de contradições
exibindo-as em temporadas no soturno museu de seu sótão
paredes que despertam risos do único visitante
e velam o sono dos guardas inúteis responsáveis pela
[segurança do acervo
vozes
(há quantas eternidades?)
se engalfinham com ânsia nas tuas gengivas
(é possível no museu ouvir excertos desses áudios nas
[instalações que ocupam as salas 17 a 89)
vozes ressoam enquanto você rói o que te sobra dos dedos
(você já roeu todo o seu passado em contradições)
atordoado
dispara palavras sem remorsos
e se ninguém se ofende
e se ninguém se opõe
enfurecido
sangra
e declara guerra a si mesmo
coquetel
tenho poetas vivos nas minhas paredes
tossindo tuberculoses épicas sobre batalhas perdidas
quem
(se eu encontrasse)
na legião de mutilados me impediria?
as portas do comércio foram fechadas
as entradas de prédios e garagens estão protegidas
ouço estrondos de véspera de ano-novo
mas não há dezembro neste breu
e as vozes berradas não são de festas nem de alegria
tenho justificativas derramadas no lençol
e sotaques refugiados nas sarjetas
meu coração é uma garrafa de coca-cola
riscando
candentemente
o céu esfumaçado
devastando em gasolina e caos
o que houver abaixo ao lado
fogo pálido
tenho ombros largos e nenhum discípulo
derrubo o sangue de mártires sobre os precipícios
ignoro os mitos os ritos
deitado na relva como se fosse possível
prorrogar a vida em meio aos besouros
aos poucos a muralha ruindo em lama
à noite as nuvens urrando em desconhecidos idiomas
minha alma não se agarra a saudades do passado
os gritos neste fogo
por essência pálido
queimam conscientes
de que nunca haverá algo
como amanhã
chamados e escolhidos
anatomistas escalpelam os cadáveres dos escolhidos
lançam luz sobre os ossos
músculos veias esôfagos artérias
observam
argumentam durante horas
e admitem
por fim
indignados
que não há qualquer diferença
entre os cadáveres dos chamados
nel mezzo del camin
estes holerites que me sangram
este chão que me repele sem justificativas
estas brisas que me incendeiam à beira-mar
esta algazarra que me vela
este governo que nunca reconheci
esta lareira que envelhece os homens
este jardim que apodrece ao meio-dia
esta quarentena que se arrasta há mil noites
estes assassinos que me arrancam bocejos
esta nuvem que desaba dizendo não
são cortes profundos
onde esfrego sal
para que seus dedos nunca se percam
nas cordilheiras destas cicatrizes
são labirintos claustrofóbicos
em desertos de areias venenosas
que meus pés prosseguem determinados
enquanto me aproximo de ti
a vida íntima das joias
a piscina aos domingos
as tardes de equitação
as rodadas de gin
nada disso é ruim
claro que não
esta rotina burguesa
compulsivos risos histéricos
a vida íntima das joias
o sobe e desce do dólar
as detalhadas discussões dos sapatos
vestidos com estranhos nomes estrangeiros
o fogo da infidelidade de não sei qual atriz
são pregos que posso suportar
se não te irritarem é claro
porque ceifam quem quer que seja com sangue
as foices nascidas dos meus lábios
Link para download de Não há dezembro nesse breu, livro vencedor (2º lugar) do Prêmio Biblioteca Digital 2020 da Biblioteca Pública do Paraná:
Alexandre Gaioto é formado em Jornalismo (Unicesumar) e Letras (Uem) e mestre em Estudos Literários (Uem). Atua como jornalista e já colaborou com o Correio Braziliense, Jornal do Brasil, Zero Hora, Gazeta do Povo, O Estado do Paraná, Folha de Londrina, Metro, Cândido e com as revistas Cult e Helena. Participa da obra 101 Poetas Paranaenses — Antologia de Escritas Poéticas do Século XIX ao XXI, editada pelo selo Biblioteca Paraná.