Rua do Meio: Anchieta Mendes

Sentada no banco da praça, Aline pensa nos acontecimentos dos últimos dias. Os pombos ali próximos a bicarem alimentos. O olhar perdido nas asas dos pombos, imagina tê-las. Longe de casa, da Rua do Meio, tenta serenar-se. Precisa das asas para fugir, alçar voos lépidos e nunca mais voltar. Os pombos não têm nada a ver com o que passou, o que aconteceu. Os pombos, nem as gentes, a praça, o busto de bronze de um homem sem identificação, ninguém sabia. Estava ali, sentada e sozinha, para pensar. Desgarrou-se da mãe, pai, irmãos e tia e fugiu para a praça. Sempre fora assim, desde menina. A praça era o segundo refúgio, apesar de aberta, gente a passar, a falar alto, a sorrir, a cantar, a não a perceber.

Porém, a praça, nesses últimos dias, era diferente. Além dos pombos e da tentativa de serenar-se, os olhos teimavam em buscar algo a mais. Apesar dos 16 anos, Aline pensava como uma mulher madura. Fizera besteira, claro. Adolescentes, vão e voltam, cometem asneiras, natural.

A Rua do Meio, ambiente pecaminoso, de ladrões, prostitutas e maconheiros, a fez engrossar os couros.  Rua estreita, de ambos os lados, poucos moradores ilesos. Foi em um daqueles quartos a conceber o filho e jogá-lo ao mundo. Fugira dos pais, acolhida pela tia doutros carnavais. Tia Amélia avessa a tradições, recebera Aline com as ventas dilatadas, perseguida pela pouca idade e juízo. Algumas vezes a visitava, sem avisos. Pouco tempo ficava, voltava para os pais. Naquele tempo parecia não haver volta. Nas idas e vindas, o apego ao seu príncipe suburbano marcou-lhe à ferro o destino mal deglutido. Tia Amélia compreendeu pelas narinas, e tratou de esconder a sobrinha dos pais.

Com o acontecimento, a Rua do Meio mudou. Na entrada e saída, havia sempre os parceiros do pai da criança. Vigiavam quem entrava e saía. Aline enclausurou-se.  O quarto da Tia transformou-se em cela. Lá fora, as noites eram tensas, tiros e pneus a queimarem no asfalto. Em uma dessas noites, o pai da criança deitou no asfalto. Balas pelos peitos, baço, rins e pulmão. O novo Rei do Asfalto tomou a Rua do Meio. Aline sequer soube a tempo.

Aline, entre tiros, rasgos de pneus, e as luas cada vez mais distantes, pariu um menino. Alegria da Tia Amélia, preocupação lá fora. Aline chorou dos efeitos das dores e o salgado das lágrimas ressecou os olhos. O menino não mamou. Peitos pequenos, bicos inalcançáveis, ausência de leite. Por esses dias, então,
o mundo serenou, a Rua do Meio ganhou trégua.

Quando os agentes de saúde visitaram o menino, a Rua do Meio não interveio. Os agentes souberam do rebento pelo registro civil emitido pelo hospital. Trouxeram balança, remédios e roupas. Presentes indispensáveis. Gabriel, um dos agentes, depois da visita naquela noite não conseguiu dormir. Não sabia a razão, a princípio. O olhar da criança penetrou-lhe à mente, a suavidade das feições de Aline escondia vida desgarrada, e a intensidade do tempo lá fora, agressiva. Antes de pisar na soleira da porta viu a mensagem dos olhos da menina: “Tire-me daqui.”

De volta à praça, Aline agora chorava. Lembrava do tiro nas costas sofrido por Gabriel. A criança nos seus braços não caiu, conseguiu prendê-la ao corpo. Na esquina oposta um carro esperava. Carro escuro, de vidros escuros, de luzes azuis. Ambos entraram e fugiram. Aline, enquanto via os pombos, pensava o que fazer do outro lado da rua. Olhava o hospital em frente. A cirurgia tinha sido um sucesso. As roupas em uma sacola ao lado, no banco. Precisava tomar coragem, entrar no hospital e com isso revirar sua vida e tomar novo rumo.

 

José de ANCHIETA de França MENDES, natural de Juazeiro do Norte/CE, autor de Valados de Giz – Romance (2001 – Independente); Dois dedos de prosa (Contos 2007- Independente); Alquimia – Romance (2013 – Multifoco);  Bicho Metropolitano (Contos – 2016 – Penalux) – 2º lugar no concurso de Contos Sesc Santo Amaro/SP com o conto Letargia (2003); 2º lugar concurso de contos da Academia Brasileira de Comédia, São Paulo, com o conto Os mortos não mentem (2003); classificado para Antologia de Contos da Universidade do Vale do Paraíba – Univap – São José dos Campos/SP, com o conto Um pé atrás (2003). Várias edições de contos em revistas e blogs.

@anchieta_mendes

@escritor.anchietamendes

Face: anchieta.f.mendes@gmail.com

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *