A beleza efêmera da existência: Solange Firmino

 

Ilustração: Mercurycode

 

O improviso de viverGraça Pires: Poética Edições, 2023.

 

Os poemas desse livro transmitem uma variedade de sensações, como celebração, prazer, nostalgia, busca, avassalamento, paixão, intimidade e perplexidade. Eles despertam para a efemeridade da existência e a conexão com elementos naturais, como a luz, a terra e as palavras.

Neste primeiro poema, e acho que é um dos mais importantes, há o despertar de um novo dia, sem medo da transitoriedade da vida, abraçando a singularidade do momento presente. Sugere uma disposição para abraçar as novas oportunidades que a vida oferece. Essa sensação é comparada à “força de águas imensas na confluência de rios”, uma energia poderosa e dinâmica.

O poema encerra com a ideia de que qualquer barco que a encontre ao longo do dia irá devolvê-la à infância. Isso pode ser interpretado como uma metáfora da inocência, a alegria e a liberdade que se experimenta ao abraçar plenamente o presente, sem preocupações com o passado ou o futuro.

Encontramos muito sobre infância, rio e água na poesia da poeta Graça Pires. O poeta e professor Alexandre Bonafim Felizardo, da UFG, escreveu uma dissertação sobre a obra dela: “A metáfora da água na poesia de Graça Pires: memória, infância e solidão”.

 

Sensações de um dia claro

Amanheceu.
A janela do quarto inclina-se
sobre o milagre da paisagem.
Acordei festiva
sem recear
a singularidade
efémera da existência.

Detenho no alcance das mãos
a precisão abstrata de cada recomeço.

Semelhante à força de águas imensas
na confluência de rios
hoje serei a corrente e a foz.
Qualquer barco me devolverá a infância.

 

O segundo poema retrata um reencontro com a natureza através da última laranjeira plantada no caminho do vento, evocando a sensação de prazer e a brevidade da adolescência.


Reencontro

Pertence-te a última laranjeira
plantada no caminho do vento
no lado mais próximo do rio.

O aroma espalhado é um sopro
intenso no ar que respiras.

Passeias com prazer.
Cada passo é um convite
a urgentes demandas.

Em qualquer percurso existem
paragens ao acaso onde te reencontras
tão breve que foi a adolescência.

 

No terceiro poema, busca encontrar a nascente que suavize a sede da sua voz arável, no entanto, a busca é inútil. Toda busca é sempre no âmago da infância.

 

Inutilmente

Ignoro se alguma nascente
mitigou a sede em minha voz arável
no barro quente da infância
onde todas as falas eram possíveis.

Há um espaço vazio
nos pormenores desse passado
rasgado na clareira da memória
onde uma luz impiedosa
emerge de si mesma sem aviso.

Agora por mero acaso o procuro.
Inutilmente.


O quarto poema revela a conexão intensa com a terra, em que o cheiro e a presença do barro trazem uma sensação avassaladora.

 

O cheiro da terra

Na orla da luz uma linha contínua
de sombras em labirinto
prende meus pés ao barro do tempo.

O cheiro da terra alastra pela casa.
Mistura o pão com o sangue.
Deixa um rastro na parede e nos lençóis.
Avassala-me.

Como se eu pudesse nascer
incessantemente
no clarão dúctil da morte.

O quinto poema explora a imperfeição da luz e a paixão despertada por ela. A luz trazida da infância, claro.

 

A imperfeição da luz

No rigoroso itinerário da lembrança
a sombra de um lobo espera
instintivamente em teu olhar
que a montanha se erga intacta e branca.
A mesma que trouxeste da infância
e perpetua dentro de ti a neve imaculada.

Contudo foi um sorriso
deslumbrado e leve
que começaste a amar
a imperfeição da luz perto do mar
enquanto o verão
entornava julho no teu nome.

 

O sexto poema retrata a natureza poderosa e envolvente das palavras, capazes de despertar o espanto, revelando a força impactante da linguagem poética. As palavras têm um poder cativante, pois são capazes de envolver e marcar profundamente aqueles que as encontram.

 

Tão íntimas as palavras

Tremendamente obsessivas as palavras.
Permanecem íntimas em sua voz
porque ela lhes ampara a luz.
Porque acende nas sombras
os sinais da melancolia
dos poetas que celebra com amor
em repetido espanto.

Nenhum enigma altera em seu olhar
os poemas que a convocam
para que lhes fulgure
o rosto e o nome o silêncio e o grito.

Tão íntimas.
Tão tremendamente obsessivas.
As palavras.

Por fim, o último poema menciona o “infinito perene do instante”, indicando que mesmo um único momento pode conter uma imensidão de experiências. No entanto, esse instante se dissolve “no colapso do tempo”, gerando uma sensação de perplexidade, pois a transitoriedade é parte da existência.

 

Perplexidade

Nenhuma simbologia pode explicar
o halo da chama antes da cinza.

A luz queimada na estranheza
de tudo o que perece.

O infinito perene do instante
que se dissolve no colapso do tempo
e no mais evidente alvoroço da vida.

 

Graça Pires (Figueira da Foz, 1946) editou o seu primeiro livro em 1990, depois de ter recebido o Prémio Revelação de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro “Poemas”. Depois disso publicou mais de uma dúzia de livros de poesia, muitos dos quais premiados. É licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Sua mais recente obra, Antígona passou por aqui, publicada pela Poética Edições, ficou entre as obras finalistas dos Prémios PEN 2022.

É sócia da Associação Portuguesa de Escritores e da Sociedade Portuguesa de Autores.


 

Solange Firmino – Rio de Janeiro (RJ). É Professora de Português e Literatura. Venceu dois grandes prêmios de literatura, sendo o último em 2021, com o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná, na categoria Literatura Infantil. Possui 7 livros de poesia publicados.

 


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