A menina que aceitou a chuva: Solange Firmino para Virgínia do Carmo

 

 

A menina que aprendeu a matar centopeias e outros poemasVirgínia do Carmo: Poética Edições, 2023.

No geral, os poemas do livro de Virgínia do Carmo apresentam uma variedade de temas, desde a passagem do tempo e a busca por significado até a solidão e a coragem. A linguagem poética é expressiva e evocativa, criando imagens vívidas e despertando emoções no leitor. Cada poema tem sua própria voz e estilo, contribuindo para um conjunto diverso de reflexões.

A linguagem poética do primeiro poema escolhido é simples, mas eficaz, transmitindo uma sensação de reflexão e contemplação sobre a passagem do tempo. Evoca a sensação de crescer e envelhecer através da metáfora da procura amassando o destino. A imagem da pele dobrada nos sítios certos sugere a experiência acumulada ao longo dos anos.

Idade

 

Procuro amassando o destino

com os nós nos dedos domados

pela idade. Em breve serei uma menina

crescida, com a pele dobrada

nos sítios certos.

 

O próximo poema explora o peso emocional de guardar memórias e a dificuldade de esquecer. A linguagem é intensa e evocativa, transmitindo uma sensação de fragilidade diante das memórias. A metáfora de empacotar a alegria em uma caixa frágil de cartão e levá-la para a cave mais escura sugere a necessidade de preservar lembranças preciosas, mesmo quando se sabe que podem se perder ou quebrar.

Guardar a memória

 

Sabes lá o que custa guardar a memória,

decompor o riso e esquecer. Empacotar

toda a alegria numa caixa frágil de cartão,

levá-la nas mãos trêmulas até à cave mais

escura. Descer as escadas velhas, falhar

um degrau e cair. Ver a coragem e saltar

do corpo, na queda. Ouvir o som que faz

o riso ao partir-se. Procurar os pedaços, 

perder os olhos abertos no chão,

perder o chão, perder o andar.

 

Sabes lá o que custa.

No poema a seguir, o sujeito lírico expressa uma sensação de desolação e solidão. A rouquidão das aves e o roçar amargo das asas no choro do vento criam uma atmosfera sombria. A imagem da voz perdida e das penas quase todas perdidas transmite uma sensação de desesperança e desconexão. A linguagem poética é melancólica, destacando a vulnerabilidade e a busca por um sentido em meio ao vazio.

Quase nada

 

É tanta a rouquidão das aves

nesta áspera noite. Tão sinuoso

o céu, tão amargo o roçar

das asas no choro do vento.

Queimei toda a água

dos meus olhos à força

de te chamar. Perdi a voz

e quase todas as penas.

Voo cega e sem norte.

Tenho frio e desconheço

se me procuras ou se me esperas.

Voo triste. Exausta.

Quase morta. Tão fria.

A crescer para ser

pedra. Quase queda.

Quase nada.

O poema “Procura” aborda a busca por significado e beleza nas coisas invisíveis e profundas. A imagem da procura da virgindade das sementes e o polimento de pedras com pétalas revelam uma busca por transformação pessoal. A linguagem é introspectiva e contemplativa, transmitindo uma sensação de procura interior e reconciliação com as imperfeições da vida.


Procura

 

Invoco no escuro absoluto as coisas invisíveis.

As que não se articulam. As que se cumprem

a rigidez das verdades fundas e antigas.

 

Como o peso de uma flor.

A bondade.

A textura do vento.

 

Vagueio por dentro dele como se

à procura da virgindade das sementes, a polir

com pétalas as pedras que me nasceram na pele

onde crescem e emudecem estas e todas

as outras imperfeições da minha idade.

 

No poema seguinte, a solidão é explorada como um estado de esgotamento emocional. O sujeito expressa a sensação de não estar mais conectado ao ciclo das estações quando diz não haver flores que brotem em sua pele. A linguagem poética transmite uma sensação de desesperança e estagnação, destacando a ausência de nutrição emocional.

Solidão II

 

Não é que o meu corpo esteja morto.

Apenas já não segue o ciclo das estações

e não há flores que me nasçam em lugar nenhum

desta minha pele esgotada e infértil, desprovida

há tanto tempo do húmus de outras mãos.

“Eudaimonia” é uma doutrina que prega a felicidade como a finalidade da vida humana. É justamente o que esse poema pretende, evocar a ideia de encontrar a felicidade através do equilíbrio e da aceitação. A imagem de prender as nuvens na corda e ingerir montanhas e mar sugere uma abertura para experiências diversas e uma disposição para aceitar tanto os momentos bons quanto os difíceis. A linguagem é positiva e encorajadora, transmitindo uma sensação de crescimento pessoal e resiliência.

Eudaimonia 

 

Não perder a linha do horizonte.

Prender as nuvens na corda de estender

as lembranças ao Sol e aceitar a chuva

que vier. Não enlouquecer. Segurar os olhos

pelo coração. Ingerir regularmente montanhas

e um pouco de mar. Crescer sem pressa.

 

                              Perdoar.

 

O último poema apresenta uma imagem forte e empoderada da menina que cresceu e se tornou corajosa. A linguagem é enérgica, transmitindo uma sensação de força e determinação. A menina é retratada como alguém que enfrenta desafios e supera obstáculos, tornando-se uma figura destemida.

 

A menina que aprendeu a matar centopeias

 

Não preciso que todos os dias sejam

mansos. O meu corpo não é de seda.

Acordo muitas vezes com pele de árvore

e já provei o sangue das tempestades.

Quase nunca sou brisa. Mais vezes sou

vento nascido dos trovões. Caminho descalça

na lama. Tenho braços de furacão. Não sou

frágil. Não sou do meu tamanho.

Eu sou a menina que cresceu. Que decorou

gritos de guerra. Que salta muros e cercas.

A menina que aprendeu e agora sabe

matar dragões e centopeias.

 

 


Virgínia do Carmo
 nasceu em França em 1973, mas cresceu em Trás-os-Montes, onde estão todas as suas raízes. É licenciada em Comunicação Social pelo ISCSP / UTL. Foi jornalista no início do seu percurso profissional, tendo deixado esta actividade para se tornar livreira. Em 2013 fundou a Poética Edições, projecto a que se tem dedicado desde então.

É autora de algumas obras, de que se destacam Relevos (poesia, Poética Edições, 2014), Poemas simples para corações inteiros (poesia, Poética Edições, 2017),  Ecos de Green Rose (poesia, Poética Edições, 2019) e Uma luz que nos nasce por dentro (contos, Reed. Poética Edições, 2020) e Zulmira morreu (romance, Poética Edições, 2021). Está presente em várias antologias, teve poemas traduzidos para castelhano. A sua obra “Zulmira morreu” está traduzida em mirandês e espanhol.

 

Solange Firmino – Rio de Janeiro (1972). É graduada em Português e Literatura pela UERJ. Venceu o Prêmio Literário da Fundação Cultural do Estado do Pará com um livro de haicais e o 2º lugar no Prêmio da Biblioteca Pública do Paraná, na categoria Literatura Infantil. Possui 7 livros de poesia publicados.

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