A CONCHA E O MOVIMENTO: A POESIA DE LÍDIA OLIVEIRA

 
 
Foto: Irina Ionesco, “drácula”
 
 
do que não se move
 
somos melancólicos, amor
e sempre seremos
sentamos lado a lado
nestas cadeiras das horas
que marcam teu verso
estamos melancólicos, amor
com a pequena luz dos dias
nos alimentamos
a guerra fria está engolindo
as vozes
enquanto, sentados,
nos agarramos às cadeiras
sólidas, seguras de si
cheias de si e não de nós
a luz ofuscante invade
a sala e, por um momento,
cremos morrer lado a lado
sentados nestas cadeiras
que marcam meus versos
angústias flutuam em nossos pés
aos pés das cadeiras
que não suportamos
as luzes se apagaram, amor
e estamos melancólicos
nenhum impulso
ou movimento que nos empurre
feito estilingue
para longe destas cadeiras

cheias de si e não de nós

 
abrir as mãos e ler a concha
 
é porque você tem os olhos
mais lindos que já li
e vejo dentro deles a pupila
gravando os detalhes da sala
o cheiro a grafia na página.
você me pergunta o que
significa um lance de dados
e a gente conversa sobre a nossa
inexperiência sobre como não sabemos
dos poetas clássicos sobre como abrir
um livro e ouvir uma concha
[a concha inesperada do poema
já que nunca vi o mar
nunca ouvi uma concha ]
sobre como fechar os ouvidos à
concha é menos importante que
fechar suas pupilas num dia de sol.
o livro na sua mão ouve melhor a
concha da sua boca materializando
em sussurro o impossível do rosto.
os fios brancos no seu cabelo
se parecem tanto com as cadentes
adormecidas na sua noite embaraçada
que, mais uma vez, tomo nas mãos
a concha

à distância necessária dos ouvidos.


04:10 nota
 
morangos caídos na página
como na cesta que leva para casa
mofados, caídos, em guerra
há maneiras mais importantes
de estar sozinho neste mundo
perder a cesta, deixar cair os morangos
esmagá-los com os pés sujos
na fúria de não haver raízes
sentir na gengiva a acidez
queimando toda possibilidade
de descanso
a júlia não fala de morangos
quando pensa na linguagem espiritual
das coisas

porque a carne pesa muito, e sangra

 
 

na linha aguda destas palavras sujas
poder apagar e fechar o ponto
e o nó que nem sei costurar
a recorrência se justifica
você não fica e nunca
rubel, você num poema
e sua voz cortando a noite
você numa linha, do trem e não
do poema e da cinza
[nunca levar à boca
o cigarro]
nunca o canto que passa
na linha aguda do frio
e um rio e o mapa
incompleto da cinza
e você dizia:
é fácil ser feliz
e eu ria
 

de dentro
 
passaria dentro de um carro qualquer, roendo as unhas no mormaço da tarde. cortaria os cabelos e encheria o piso com o algodão preto na queda. numa bicicleta feliz, passaria de mãos dadas com a filha, sorrindo e olhando as vitrines. atravessando os olhos num mormaço em algodão, sentaria. ouviria o barulho da máquina que corta os cabelos negros. de dentro da vitrine roeria as unhas de mãos dadas com a tarde. abraçaria a queda numa bicicleta enquanto o algodão preto ouviria o barulho do piso. quebraria a vitrine, enchendo os olhos de mormaço. um mormaço que atravessa a rua e chega aonde não está.

 
 
Lídia Oliveira é mestranda em Literatura e Memória Cultural pela Universidade Federal de São João del-Rei e publica seus textos no blog Beija-flor-de-lis: https://beijaflordelis.blogspot.com.br/. |
 

 
 
 
 
 
 
 


 

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